Lonas pretas, retratos de dor e sofrimento de um povo!

O vento frio soprava sobre as chamas de um pequeno fogo no chão. No céu, uma lua clara iluminava a fumaça que subia, como que indo ao seu encontro. Ao redor do fogo algumas mulheres, homens e crianças em silêncio contemplavam a noite. A tranquilidade daquele momento, à luz da lua, ao calor do fogo, era quebrada pelos sons inquietantes e quase que ininterruptos dos caminhões que trafegavam pela estrada. À beira de uma rodovia, os barracos de lonas pretas servem de abrigo e lar para a comunidade Guarani Mbyá do Arenal, localizada sobre o barranco da BR-392, na cidade de Santa Maria/RS.



O artigo é de Roberto Antonio Liebgott, do Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre.



O silêncio naquele início de noite, segunda-feira, 13 de junho de 2011, tinha uma única razão. O luto. Morreu, dois dias depois de nascer, Rodrigo Martins. A mãe, Suzana Benites, acometida por uma pneumonia deu a luz prematuramente ao menino. Ela permanece internada em estado grave.

Em 09 de junho de 2011 nasceu mais um Mbya na beira da estrada, debaixo de um barraco de lona preta, sob o frio intenso e úmido de outono. No dia 11 de junho de 2011 ele foi acolhido por Ñhanderu. Foram apenas dois dias vividos. Tempo suficiente para que Rodrigo sentisse no corpo a dor e a angústia de seu povo.

O pequeno Rodrigo veio habitar um mundo doente. Mesmo no ventre de sua mãe sofreu, junto com ela, o descaso, a omissão e a negligência do poder público. Ele foi concebido sob o abrigo das lonas e sobre o chão molhado. Lá, no barranco da estrada, sem as mínimas condições de vida, passou sua gestação guardado e amparado pelo ventre da mãe que adoecia. Ela, mesmo doente, o amou e sonhou com a possibilidade de que o filho pudesse ter uma vida melhor do que a dela e a de seu marido, o Karaí (líder religioso) da comunidade, Marcelino Martins.

A morte do Rodrigo aconteceu porque os órgãos de assistência, especialmente a Fundação Nacional do Índio (Funai), a Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena (SESAI) e a Prefeitura Municipal de Santa Maria, desprezam o povo Guarani. Desprezam o seu modo de ser. Desprezam seus direitos humanos e constitucionais. Os governos federal, estadual e municipal não reconhecem estes direitos. O abandono e a omissão parecem ser parte de uma política previamente planejada.

Não é por acaso que este povo vive, resiste e reclama direitos nas margens de estradas ou em pequenas áreas de terras sem água potável, sem saneamento básico, sem terra para plantar e produzir seu sustento. E na noite em que Suzana Benites dava a luz a Rodrigo, as lideranças Guarani do Arenal reivindicaram apoio médico, bem como solicitaram uma ambulância. E certamente não foi por acaso que elas não foram atendidas.

Nada é por acaso numa sociedade preconceituosa e governada por autoridades e políticos igualmente preconceituosos. Nesta sociedade não há lugar para povos e culturas diferentes, pois estes são oposição ao modo capitalista de ser.

O Povo Guarani, assim como os demais povos indígenas, está entre aqueles que os governantes, desde a ditadura militar, gostam de classificar como estorvo, penduricalhos ou entraves. É por isso que não se demarcam as terras, não lhes são destinadas políticas públicas adequadas e coerentes. O máximo que lhes oferecem são esmolas, através de cestas básicas ou as sobras de alguns medicamentos, ou os resquícios de alguma capoeira nas margens de domínio das estradas e/ou pedaços de lonas pretas. Lonas que na essência da imagem são como que retratos da dor e do sofrimento do Povo Guarani no Rio Grande do Sul.
Nisto se resume a política do Estado Brasileiro para os Guarani Mbya. As condições a que se submetem estes homens, mulheres e crianças, são desumanas e inaceitáveis: viver em acampamentos provisórios, desprovidos de tudo o que pode assegurar a vida. E eles seguem vivendo, não por dias ou meses, mas por anos e anos uma situação de desesperadora espera pela ação do poder público, pela constituição de GTs de identificação e delimitação territorial, pela demarcação e garantia das terras. Mas o governo nada faz! Pratica, com isso, um genocídio lento e gradativo. Desrespeita a dignidade e os direitos humanos, sociais, políticos deste povo já tão ultrajado.

Mas, apesar do Estado e suas estruturas desumanas, a resposta é a resistência. Impressiona aos que convivem com os Guarani Mbya o fato de que, mesmo diante da dor e do sofrimento, eles se apegam à Vida.

Sustentam-se no modo de ser Guarani. Apegam-se a sua cultura, as suas crenças, a sua tradição. Apegam-se a sua religiosidade e rejeitam completamente o modo de ser dos Juruá (brancos).

O que certamente incomoda os governos é constatar que apesar de suas políticas e artimanhas os Guarani não desistem de lutar pelos seus direitos. E certamente incomoda ainda mais as autoridades o fato de que as lutas Guarani não são convencionais ou previsíveis, elas são cotidianas, insistentes e contínuas, tal como o seu modo de viver, num contínuo caminhar. Elas são centradas na crença de que há "uma terra sem mal" e que esta deve ser buscada e conquistada através do diálogo, da tolerância, da perseverança, não como uma utopia, mas como possibilidade real.

Os Guarani do Arenal já apresentaram às autoridades municipais, estaduais e federal um programa de ações para solucionar os problemas a curto, médio e longo prazo. Querem assistência continuada em saúde. Querem também que a Funai crie um grupo de trabalho para proceder aos estudos de identificação e delimitação de uma terra dentro do vasto território Guarani. E desejam ainda que, enquanto isso não acontece, seja destinada uma área para o assentamento das famílias que vivem em beira de estradas, mas este local precisa oferecer condições adequadas para viver, tendo água potável, casas, saneamento básico, assistência em saúde, educação.

As propostas são simples, viáveis e pouco dispendiosas. No entanto, os entes públicos não esboçaram nenhuma intenção em implementá-las. Ao que parece, a omissão, a negligência ou o mero assistencialismo são os traços marcantes de uma política destinada aos povos indígenas, que se concretiza cruelmente na realidade dos acampamentos à beira de rodovias.

Os barracos de lona parecem sinalizar que as reivindicações dos Guarani não têm a menor importância e que a existência deste povo não interessa ao poder público. Também não interessa à sociedade que sequer percebe a presença deste povo em acampamentos que agora estão como que incorporados à paisagem.

Esta dura realidade ofende não somente o modo de ser dos Guarani Mbya, como também um conjunto de princípios e de direitos, cunhados com suor e sangue, para resguardar nossa humanidade. Ao submeter os Guarani Mbya a esta condição desumana, o poder público insinua, em síntese, que não há lugar para este povo, num mundo em que a propriedade e a máxima produtividade definem o que conta e o que pode ser descartado. Nega-se assim o direito, nega-se a diferença, nega-se a vida.

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