A luta Mapuche e de todas as etnias de Abya Yala


Falar da luta indígena na América Latina é sempre um desafio. Primeiro porque muito da história das comunidades vive apenas na memória, e os registros mais conhecidos são sempre de não-índios. Há, claro, muitos historiadores sérios e comprometidos com a recuperação da verdadeira história, mas também há os que embutem nos seus textos toda a carga de preconceito historicamente construída, bem como a completa incompreensão sobre a cosmovivivência destas comunidades. 

É usual observar e narrar a história e as lutas indígenas desde a mirada do presente e com as categorias epistemológicas colonizadas. Isso é bastante comum no caso de estudiosos da direita, mas também se nota o fenômeno em alguns pesquisadores alinhados mais à esquerda. Até um tempo atrás isso poderia ser compreendido pelo desconhecimento real da filosofia e da práxis dessas comunidades, mas hoje não é mais possível aceitar.

Um exemplo disso é o pensador peruano José Carlos Mariátegui, que no seu livro clássico "Sete ensaios sobre o Peru", abriu um caminho importante para se pensar os problemas relacionados ao mundo indígena na década de 1930. Ele apontou que no seu país – e isso pode se estender para todas as Américas – não tinha um "problema indígena", mas sim um "problema da terra". Ou seja, toda a algaravia sobre as comunidades nada tinha a ver com ser originárias ou não, mas sim com o fato de que pleiteavam sua terra ancestral, o que para o capitalismo que se fortalecia na região era – e ainda é – não é - não é. O tema então deixava de ser moral para se transformar num problema social, econômico e político.

Ainda assim, desvelando esse mistério a partir de uma mirada marxista, a proposta de Mariátegui para os indígenas era o socialismo e a distribuição da terra, a reforma agrária. Obviamente que Mariátegui não tinha ainda as condições históricas de apresentar uma proposta que partisse do mundo indígena. Todo modo de vida milenar que sobrevivia nos povos originários naquele então foi identificado por ele como um comunismo primitivo e não como uma forma original, única. Isso não invalida, de forma alguma, a proposta construída pelo teórico peruano de incorporação dos indígenas ao sonho socialista. Ocorre que, naqueles dias (1930), o movimento indígena latino-americano não teve espaço para apresentar suas demandas desde a própria perspectiva. Mesmo até sua história ainda estava escondida. Pouco se sabia da cosmovivência, dos conceitos fundadores de cada povo ou mesmo dos seus núcleos éticos-míticos. E por mais boa vontade ou vontade política que Mariátegui tinha, provavelmente não conseguiria formular desde a realidade originária. Esse é um caminho que só vai começar a se descortinar nos anos 1990, com as novas lutas indígenas que surgirão, e no qual o modo de vida indígena já aparece mais desvelado.

Então, se apenas nos anos de 1930 um teórico latino-americano, de esquerda, vai desviar a questão indígena da moral, colocando-a sob a materialidade econômica-política, fica bastante claro que, por séculos, a história indígena foi excluída e as comunidades que resistem por todo esse tempo tiveram de construir suas alternativas de sobrevivência e a partir de seus fundamentos políticos. E, mesmo depois de Mariátegui ter descortinado outra perspectiva de análise sobre o tema indígena poucos teóricos da esquerda espectro seguiram por trilha essa.

No geral, e a história confirma, a maioria sempre apresentou a mesma solução do peruano: socialismo, igualdade e incorporação das comunidades a uma identidade nacional. Observa-se isso na revolução boliviana de 1952, quando as terras indígenas foram distribuídas em lotes individuais ou na revolução sandinista em 1979, quando também as terras da etnia Miquisto foram tomadas pelo governo revolucionário para a reforma agrária, obrigando centenas de famílias a migrar pelo território.

Essas políticas desastrosas por parte de governos de esquerda acabaram por colocar comunidades indígenas na mão da direita, porque, para elas, esses são conceitos – direita e esquerda – que não encontram significado. Tanto que no caso da Nicarágua, os Misquito desterrados acabaram se juntando ao "contra", atuando contra a revolução. O que as comunidades originárias demandam é o seu território e a autonomia para existir conforme sua cosmovivência. Coisa ainda difícil de ser aceita por muito teórico bom.

Toda essa conversa é para discutir sobre um texto que recentemente escreveu sobre o Mapuche e que teve repercussão em Portugal, com a indignação de alguns pelo fato de eu ter escrito que a batalha da comunidade "teve um hiato durante a ditadura de Pinochet". Como não expliquei direito, vou explicar.

Quem conhece a história dos Mapuche sabe que essa foi uma etnia que – o exemplo do Misquito na Nicarágua – nunca foi colonizada pelos espanhóis, chegando a manter com a Espanha relações diplomáticas reino a reino. Sua só queda se deu, paradoxalmente, com as guerras de libertação iniciadas em 1810. Os generais criollos libertavam a América e subjugavam os Mapuche. Ainda assim a resistência foi grande. Mas muito das terras ancestrais foram roubadas e entregues a colonos brancos.

Bem mais tarde, durante o governo de Salvador Allende houve uma tentativa de retomar o tema da questão das terras Mapuche desde uma perspectiva de esquerda e a Lei Agrária editada por ele acabou por reintegrar à comunidade Mapuche algumas propriedades que foram perdidas durante a chamada "conquista da Araucania". Houve a entrega de 152 prédios a diferentes comunidades através das Cooperativas de Reforma Agrária. Também aconteceram expropriações organizadas pelo movimento social Mapuche, conhecidos como "el Cautinazo", entre os anos de 1965 e 1973 e as comunidades conseguiram recuperar mais de 165 mil hectares entre as províncias Arauco e Cautín. Mas, conforme historiadores Mapuche, como Fernando Pairican, essa reforma não chegou a ser uma ampliação do território original nem tampouco se deu no sentido de respeitar o "ser" mapuche. A lógica foi a mesma de Mariategui e da revolução boliviana. E não houve tempo para mais.

Com o golpe militar esse processo de reaproximação mais respeitoso do Estado chileno com o Mapuche foi cortado. Pinochet era a cabeça de uma ditadura sanguinária que tomou o Chile depois de derrubar armas pelo presidente socialista Salvador Allende. Ele promoveu um banho de sangue, buscando destruir fisicamente qualquer sinal da esquerda no país, matando, desaparecendo e torturando milhares de chilenos. A ditadura também agiu duramente junto ao Mapuche e entre eles foram – segundo o informe "Trabalho de Investigação de executados e desaparecidos 1973-1990 da nação Mapuche" feito pelo historiador Hernan Curinir Lincoqueo, o sociólogo Pablo Silva Carrasco e o trabalhador social Conrado Zumelzu Zumelzu, 171 casos comprovados. Pode ser mais.

Os Mapuche que foram mais vinculados ao governo de Allende foram perseguidos, desaparecidos e mortos como todos os chilenos de esquerda e as terras que foram reintegrados durante o governo da Unidade Popular de novo foram tomadas pelo exército. Relatos dão conta que os militares tiravam o Mapuche de dentro de casa e disparavam ali mesmo, na frente das famílias, obrigando-como o enter os corpos na própria terra. Ou passar aindam de helicóptero pela comunidade.com as pessoas penduradas de cabeça para baixo, indo sabe-se lá para onde.

Mas, tão logo essa primeira onda de violência avassaladora se abateu sobre a comunidade o governo de Pinochet passou a ofensiva no sentido de cooptar algumas lideranças Mapuche para seu projeto de desenvolvimento nacional e foram criados comitês comunitários – com aliados internos – garantir a entrada dos Mapuche no mundo do capital que aparecia como um espaço de desenvolvimento. Esses comitês garantem ajuda médica, assessoria agrícola e abriam possibilidades de melhoria de vida dentro dos moldes do capital. Muita gente participou dessa subdivisão das comunidades porque ao fim isso permitiu que seus filhos fossem à escola e que pudessem sair da pobreza no qual viviam. O projeto obedecia a mesma velha ideia de "integração" do indígena a uma identidade nacional.

Claro que a proposta do ditador não era de dar autonomia aos Mapuche, nem desenvolver suas comunidades, nem respeitar sua cultura, nem considera-los aliados. Apenas tratava de dividir para dominar, visando garantir a "paz" na região da Araucania. Tanto que entre os anos de 1978 e 1990 o governo entregou 69.984 títulos de propriedade às famílias Mapuche. Logicamente que eram títulos individuais, de pequenas parcelas de terra, também completamente para o do modo de vida Mapuche, que sempre primou pela propriedade coletiva da terra. Assim, com a ação de seus aliados dentro da comunidade, o ditador conseguiu minimizar os conflitos, inclusive usando a cultura Mapuche como expressão do folclore.

Outra tática do regime militar foi separar como famílias. Para isso é editado o Decreto Lei 701 que abre caminho para a exploração florestal, proposta fundamental para a desarticulação e fragmentação das comunidades Mapuche. Grandes empresários iam avançando sobre as terras e os Mapuche foram obrigados a migrar os territórios seus originais, seja pela força da coação, da invasão dos posseiros ou por conta da destruição do solo provocada pelos eucaliptos. A paz daqueles dias era a do cemitério.

O hiato de lutas mais acirradas e organizadas existente no governo Pinochet se deveu a isso e, é claro, a própria força da violência do regime, que fez com que os grupos mais à esquerda trabalhassem clandestinamente, fossem eles Mapuche ou não. E, nesse sentido, foram fundamentais na resistência, período, o Conselho Regional Mapuche, fundado em 1977, os Centros Culturais ligados à Igreja Católica, nascidos em 1978, e a Associação Gremial de Pequenos Agricultores e Artesão Ad Mapu, que aparece em 1981 e vai se contrapondo de mais claramente contra o regime.

A partir dos anos 1990, em todo o território de Abya Yala começa a se expressar mais publicamente a reação indígena, que se forjava nos espaços profundos de toda a América Latina. Foi assim no México, na Bolívia, no Peru e no Chile não é diferente. Assim a luta Mapuche volta a crescer no sentido de fazer com que os governos devolum como terras roubadas e reconhecessem sua autonomia. Nesse ínterim, a ditadura chilena cai, a democracia volta à cena, mas os governos que se sucedem não são capazes de atender as reivindicações da comunidade. Daí que novas e potentes lutas são travadas desde então.

A história Mapuche não se diferencia muito das demais etnias no que diz respeito aos governos dos estados nacionais. Quando está à direita, os governos usam políticas paternalistas para cooptar os mais ingênuos enquanto vão provocando o roubo sistemático do território e quando está a esquerda, como as lideranças não conseguem avançar muito além de suas ideias pré-concebidas sobre reforma agrária de corte burguês e a ideia de que haver deve uma identidade nacional unificando tudo. Os povos originários têm respostas para isso: é a proposta do estado plurinacional, que já caminhou um pouco na Bolívia e no Equador, embora ainda não tenha chegado a um estado ideal.

É fato que há movimentos mais radicais e separatistas, mas a proposta hegemônica continua sendo a de conviver dentro do já demarcado estado-nação, garantindo o território e a autonomia. O movimento indígena sabe que não pode apagar com uma borracha a mais de 500 anos de dominação, genocídio e memoricídio, mas tem claro que os estados que se conformaram na balcanização da independência tem com os originários uma dívida histórica. E é aí que os partidos de esquerda e movimentos sociais ligados aos trabalhadores deveriam atuar. Construindo com os indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais – que tem suas particularidades bem definidas – uma proposta que aproxima os trabalhadores não-índios para a invenção de outro modo de produção da vida. Já que, no modo capitalista, todos estão sob a opressão. No Chile, durante as grandes manifestações coletivas dos últimos anos isso vem se costurando, tanto que a bandeira Mapuche esteve lado a lado com estudantes e trabalhadores.

Esse é um longo caminho ainda por se fazer. Mas, em alguma medida já está se fazendo.