A luta dos povos originários em Santa Catarina

Por Elaine Tavares - jornalista

Um júri popular definiu, na última terça-feira (18/10), que oito pessoas da etnia Kaikang são as culpadas pela morte do fazendeiro Olices Stefani, ocorrida em fevereiro de 2004, na cidade de Abelardo Luz, durante um conflito envolvendo agricultores e indígenas. A decisão é estranha porque, segundo o CIMI, não foram apresentadas provas quanto a quem realmente foi o autor do disparo que acabou matando o fazendeiro na madrugada daquele carnaval. Mesmo assim, quatro deles foram condenados a seis anos de prisão pelo assassinato e outros quatro, condenados a nove anos, acusados também de cárcere privado. Segundo Jakson Santana, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de Chapecó, a condenação não se sustenta e é muito mais uma condenação ao movimento dos indígenas pela demarcação de suas terras do que da morte em si. “Qualquer pessoa poderia ter matado o fazendeiro. Era madrugada, no meio do nada. Não há provas de que foram os índios.”

A morte de um dos mais importantes fazendeiros da cidade de Abelardo Luz, que era também representante do Sindicato Rural, se deu num contexto de conflito, quando, em fevereiro de 2004 os Kaigang ocuparam uma fazenda na luta pela demarcação de suas terras ancestrais. Havia um processo correndo na Funai, mas tudo estava parado, como é comum quando se trata das terras indígenas. Desde 1998 esse grupo de Kaigang estava acampado em uma pequena extensão de três hectares, esperando que suas terras fossem definitivamente demarcadas para que pudessem viver em paz. Historicamente a etnia Kaigang ocupava um vasto território que vai desde a região do Rio Tietê, em São Paulo, até o Rio Grande do Sul. Com a expansão das fronteiras agrícolas, essa etnia foi sendo empurrada para outros espaços e muitos grupos foram completamente dizimados. A chegada dos colonos estrangeiros, que vinham para o Brasil acreditando nas belas propagandas que o governo fazia, de terra boa, fértil e vazia, acabaram sendo os principais algozes, pois, ao chegarem se deparavam com a fúria dos autóctones. E, visando garantir seus direitos – oferecidos pelo Estado – não se furtavam de matar e “limpar a área”. Não bastasse isso ainda havia os aventureiros, que adentravam o Brasil profundo grilando terra e arrasando a vida que por ali estivesse.

Na cidade de Abelardo Luz, oeste de Santa Catarina, os conflitos de terra são seculares. Mas, no que diz respeito aos Kaigang, foi na década de 50 que o próprio Serviço de Proteção ao Índio (SPI) deu a pá de cal na expulsão dos indígenas da área conhecida como Toldo do Imbu, hoje reivindicada pelos Kaigang. Segundo lembranças de um velho índio que era chefe do grupo na região, Otávio Belino, compiladas por Egon Heck, do Cimi: “naqueles dias eles chegaram, com jagunços armados, e foram colocando todas as nossas coisas num caminhão. Eles nos caçaram e tiraram todo mundo da terra, amarrado. Essa terra sempre foi nossa”.

Mas, como conta Belino, os índios foram tirados à força, com o apoio dos grandes proprietários da região, que hoje assumem uma posição de vítimas. Foi por conta dessa história que, nos anos 90, os Kaigang recrudesceram a luta por aquilo que era deles por direito. A Funai abriu processo para regularizar a área, não sem antes haver toda uma articulação promovida pelos poderosos da região para impedir, até porque as terras roubadas dos índios hoje estão na mãos – em maior volume – dos grandes fazendeiros. É certo que existem pequenos produtores também vivendo na área, mas esses não são os maiores entraves à demarcação. Ressarcidos, eles poderão seguir com suas vidas de pequenos agricultores, já que não são exploradores capitalistas. O que pega mesmo é a pequena parcela de grandes proprietários que transformaram as terras indígenas em empresas rurais.

O crime

A situação que acabou na morte do fazendeiro Olices Stefani é cercada de fatos confusos. Os 250 Kaigangs que lutavam pela demarcação de suas terras decidiram ocupar uma fazenda à margem de uma estrada, visando pressionar a Funai, uma vez que o processo estava engavetado e eles estavam morrendo à míngua num espaço minúsculo, no qual não podiam sequer plantar. A ocupação já durava três dias e havia levantado polvorosa na cidade. Os fazendeiros, liderados pelo Sindicato Rural, pressionavam o governo para que os indígenas fossem retirados, afinal, uma ocupação sempre acaba rendendo debates e isso não seria bom para os que se diziam “donos” da terra que era, na verdade, dos índios. Quatro dias depois da ocupação, em pleno carnaval, por volta da uma hora da manhã, os fazendeiros entraram na fazenda ocupada. O que se seguiu só os que lá estavam podem contar. No meio da madrugada, assustados, os Kaigang imaginaram que seriam massacrados, afinal, a jagunçagem é bem conhecida por aqueles que lutam pelos seus direitos. O fato é que houve um disparo e o fazendeiro acabou morto. Mas, ninguém sabe quem disparou. Os indígenas negam que tivessem armas. O fazendeiro, segundo relatos do Cimi, tinha muitos desafetos na região. “Quem pode garantir que não tenha sido um crime a calhar. E além de tudo, botando a culpa nos índios. Tudo é muito obscuro. E o que esses fazendeiros foram fazer na ocupação, de madrugada, em pleno carnaval?” Essas perguntas ficam sem resposta.

Um seminário promovido pelo Senado Federal, na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, poucos dias depois do conflito, dá conta de como o governo e os fazendeiros estavam lidando com a questão indígena no local. Diz o representante do secretário da Agricultura de SC, Ari Neoman: "Estamos no centro do problema, já que de um lado estão os agricultores, que produzem não apenas para comer, mas também para exportar, aumentando a balança comercial do país. E de outro os índios, que necessitam de suas terras para viver". Ou seja, quem teria mais poder aí? Os índios ou os que aumentam a balança comercial?

Também participou da reunião o representante do prefeito de Seara, procurador Paulo Vantuin, que disse ser um absurdo a Funai querer aumentar as terras indígenas de 900 para 5 mil hectares, pois isso prejudicaria 1.300 pessoas que ocupam a região. E argumenta: “Entendemos também a situação dos índios, mas as famílias que estão na região há mais de cem anos não podem sair tão prejudicadas." Ora, os indígenas, que vivem ali há centenas de anos, podem?

O fazendeiro Ilson de Sousa foi mais longe e falou que há uma “indústria da criação de áreas indígenas no país”. Exigindo a prisão desses que, segundo ele, formam a tal indústria, ainda “acusou” os Kaignag de não trabalharem e também de possuírem carros, celulares e imóveis. "Se os índios têm tudo isso, para que querem mais terras?" Se isso fosse um argumento válido então caberia aqui também perguntar se ele mesmo, o fazendeiro, tem celular, carro e não trabalha (quem trabalha são os empregados), por que precisa também das terras? Isso mostra o tremendo desconhecimento da realidade cultural dos indígenas e mais, expressa o preconceito, o racismo e a intolerância. Nada mais natural num grande proprietário de terra.

O hoje

O fato é que o resultado daquela madrugada obscura foi a morte de um fazendeiro e, agora, a condenação de oito Kaigang. Os indígenas seguem afirmando que não mataram o fazendeiro. Não há provas contundentes de que foram eles, mesmo assim estão condenados. A defesa diz que vai apelar, pois só o argumento de que não há como saber quem atirou, inviabiliza uma condenação. Mesmo assim, o caso haverá de arrastar-se. Os indígenas Albari José Oliveira Santos, Valdecir Oliveira Santos, Mauri Santos Oliveira e Vanderlei dos Santos tiveram penas de nove anos, e Marciano Oliveira dos Santos, César Galvão, Vanderlei Felizardo e Claudir da Silva tiveram penas de seis anos.

A condenação tampouco “resolve” a questão dos conflitos de terra naquela região, porque esse não é um caso de polícia. A demarcação das terras Kaigang é direito de um povo que, como bem lembra o velho chefe Belino, foi retirado à força de seu lugar de vida, para que as terras pudessem ser vendidas pelo próprio estado. Hoje, as famílias de grandes e pequenos proprietários que reivindicam estar na terra há décadas, precisam compreender que ela lhes foi vendida de forma irregular e ilegalmente, à custa da violência e da morte. Já os que simplesmente grilaram a terra, esses não devem nem ser escutados.

O triste episódio daquele fevereiro de 2004 pelo menos fez com que a questão dos Kaigang saísse da gaveta. O processo que estava parado seguiu seu rumo. Já foi feito o levantamento fundiário e começam a ser pagas as benfeitorias que foram feitas na área. A coisa ainda está emperrada porque os fazendeiros ainda tentaram, em 2007, pedir a nulidade da portaria que estabelece a demarcação. Não conseguiram. Segundo o Cimi de Chapecó, vivendo na área que será dos Kaigang existem em torno de 70 famílias, duas ou três com mais de 60% das terras.

No grupo dos Kaigang vivem 250 almas, ainda acampadas numa estreita faixa de três hectares. Os acusados da morte do fazendeiro seguem em liberdade, uma vez que a condenação ainda não esgota o assunto. A luta dos povos indígenas pela recuperação de seus territórios e de viver a vida a seu modo ainda está bem longe de terminar. E, muito mais do que vencer nos tribunais, há que vencer o racismo, o preconceito e a completa ignorância que existe sobre o mundo dos reais donos dessa terra.

12 de outubro – um dia para celebrar a luta dos povos


Ali estavam os arawaks, com suas vidas abyayálicas, cuidando de recolher frutas ou pescar. Viviam tranqüilos nas ilhas hoje chamadas de Caribe. Naquele 12 de outubro de 1492 viram assomar no horizonte os navios, e esperaram na praia. Contam os próprios cronistas de Colombo que eram gente dócil e gentil. Receberam os estranhos com curiosidade, embora sem medo. Mas, o brilho do ouro em alguns adornos selou seu destino. Era o metal precioso que os viajantes vinham buscar. É o que comprova a carta enviada por Colombo ao rei de Espanha: "E eu estava atento, me esforçando para saber se havia ouro, e vi que alguns traziam um pedacinho pendurado num furo que têm no nariz e, por sinais, consegui entender que indo para o sul ou contornando a ilha naquela direção, encontraria um rei que tinha grandes peças disso e em vasta quantidade". Colombo acreditava ter chegado às Índias e as novas viagens foram de exploração do interior, sempre na caça do ouro. Desde aí, a história da chegada dos europeus ao nosso continente formam páginas e páginas de destruição, saque e morte.

Tanto na região do Caribe, que logo nos primeiros anos viu desaparecer grande parte dos povos originários, quanto no México, depois América Central e do Sul, a invasão só teve um propósito: a rapinagem das riquezas. Civilizações foram destruídas, culturas apagadas. A religião católica foi imposta, as pessoas eram consideradas criaturas sem alma e a escravidão passou a ser naturalizada. Se os “índios” não eram gente, logo, não havia problemas com fazê-los instrumento de trabalho. E assim foi. Deles assim relatou Colombo: “serão bons vassalos, já que os índios não são gente capaz de fazer alguma coisa, mesmo premeditada".

Colombo estava errado, houve reação, mas só quando era tarde demais. Os primeiros porque eram dóceis e hospitaleiros, outros porque esperavam deuses e outros porque pensavam ser possível a convivência pacífica com outros, diferentes. O resultado foi todo um modo de vida destruído, quando não povos inteiros eliminados da face da terra.

Hoje, passados mais de 500 anos desse triste dia, os povos autóctones que sobreviveram ao massacre procuram lembrar a resistência que seus antepassados ofereceram, as lutas por libertação, a manutenção de suas crenças e modos de vida, ainda que solapados pelos invasores. Era coisa tão forte que ficou ali, latente, sempre assomando vez em quando. No início deste milênio, as lutas indígenas começaram a aparecer com muita força e unificadas. Foi-se formando um movimento de retomada das línguas, da religiosidade, da maneira de organizar a vida. Algumas comunidades lograram mudar até a Constituição de países sempre dominados pelo mundo branco. Foi o caso da Bolívia e do Equador. Apareceu o Estado Plurinacional, a revolução cidadã, a revolução cultural, reforçou-se a idéia do sumak kausay, o bem viver. Mesmo na região dos Estados Unidos, onde as comunidades autóctones sofreram os maiores baques nos séculos 18 e 19, o movimento indígena cresceu e fez-ouvir.

Por isso que agora no 12 de outubro, os povos fazem jornadas mundiais de luta, até porque, grande parte desses movimentos que envolvem os indígenas está visceralmente ligada à idéia de harmonia com a natureza, de proteção do ambiente, em defesa da água e dos recursos naturais. Ou seja, as demandas indígenas podem ser também as demandas de toda a gente.

Então, por todos os cantos da América Latina as pessoas saem às ruas para protestar. E não é um protesto ritual, folclórico. Mas uma ação massiva e determinada (ou premeditada, para desespero de Colombo) contra o sistema capitalista de produção, que tem na sua natureza a marca da destruição e da opressão. O 12 de outubro é um momento político único em Abya Yala (as três Américas), de rebelião e de esperança. Cada país centraliza o movimento na sua pauta conjuntural, mas por todo o continente se espraiam as lutas, as marchas, os gritos.

No Brasil, as lutas relacionadas ao 12 de outubro acontecem no 7 de setembro (Grito dos Excluídos), já que esta é também uma data muito significativa para o país (a independência de Portugal). E, ao contrário dos demais países da América Latina que, nesse dia afirmam sua condição autóctone, soberana e original, o Brasil reverencia a padroeira Nossa Senhora Aparecida, sendo, inclusive, feriado nacional.

De qualquer forma, pelos caminhos da América (Abya Yala) andam as gentes a sussurrar segredos, histórias antigas de tempos remotos quando eram livres. E, como dizem os astecas, as palavras criam pernas e começam a andar. É por isso, talvez, que desde que esses movimentos começaram, lá na década de 90 do século passado, tantas conquistas vieram.

Nesse 12 de outubro convido a todos para essa reflexão. Que se rendam glórias à santa negra do Brasil, memória sincretizada da religiosidade do povo que veio escravo da África, que se brinque e pule feito criança, mas, que também se encontre um tempo para irmanar com a luta dos demais povos que lutam nesse espaço de terra que é de todos nós.

Viva o dia de luta dos povos de Abya Yala!

Bem Viver e eleições marcam a XIX Assembleia Geral do Cimi


Encontro acontece entre 4 e 8 de outubro, em Luziânia, e reune cerca de 200 pessoas entre missionários da entidade e convidados

Sob o tema “A Mãe Terra Clama pelo Bem Viver”, cerca de 200 pessoas, entre missionários e convidados, estarão reunidas a partir de amanhã, 4 de outubro, para a XIX Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Durante o evento será eleita a nova diretoria da entidade e os novos representantes de seu Conselho Fiscal. O encontro acontecerá no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO), até o próximo sábado, dia 8.

Por cinco dias, as atividades girarão em torno da temática do Bem Viver, discussão que há cerca de dois anos vem sendo realizada pelo Cimi, seus missionários - atualmente divididos em 11 regionais - e pelas comunidades indígenas. O tema chegou ao Brasil há pouco tempo, mas já é bastante discutido em países vizinhos ao Brasil, como Bolívia e Equador.

De acordo com Saulo Feitosa, secretário adjunto da entidade, o Cimi traz a discussão ao país, pois acredita que ela é uma nova possibilidade de descolonização, de oposição ao capitalismo neoliberal. “Ela traz uma nova alternativa ao atual modelo econômico, que já dá sinais de esgotamento, tanto sociais quanto financeiros”, avalia Feitosa.

A proposta do Bem Viver diz que é preciso romper com o sistema mercantilista de produção e consumo, propondo ainda que se repartam os bens para que todos possam viver bem e não viver melhor, acumulando riquezas como prega o capitalismo neoliberal e seu consumo desmedido.

Para o Bem Viver é preciso descolonizar, romper ética, cultural e economicamente, valorizando a identidade e o equilíbrio é preciso ainda democratizar os meios de produção, priorizar a vida e os direitos cósmicos, bem como lutar por direitos e pelo protagonismo social.

Convidados

Para subsidiar as reflexões, lideranças indígenas, pesquisadores e estudiosos falarão sobre a temática do encontro sob diversos ângulos. Paulo Suess, assessor Teológico do Cimi, falará sobre O Bem Viver na Ação Profética da entidade. O Bem Viver e o Reino de Deus ficará a cargo de Carlos Mesters, frade carmelita holandês que vive no Brasil desde 1949.

Sob a ótica budista, os participantes acompanharão as falas de Monja Coen sobre O Bem Viver na perspectiva do Zen Budismo. A antropóloga Rita Segatto e o padre jesuíta Xavier Albó levarão as discussões sobre as Experiências Ameríndias do Bem Viver.