Na ilha de Patmos


Caverna onde São João escreveu o Apocalipse


Minha mãe era uma cristã devota e desde pequena estive mergulhada no mundo jesuânico. Por outro lado, meu pai era um compulsivo comprador de livros e aprendi a ler num desses que tratavam dos deuses e mitos gregos. Depois, mais crescida, me apaixonei pelos deuses originários aqui de Abya Yala. O resultado é que vivo submersa nestes mundos todos, cheios de deuses pagãos, mitos e santos cristãos. Nem perguntem como, mas consigo conviver com todos de forma muito harmônica. Creio que é porque, ao final, tudo é muito parecido. Os deuses, sejam lá quais forem, são as redes onde descansamos nossos corpos despedaçados.

Pois foi cheia de reverência que cheguei à ilha de Patmos, na Grécia. Lá eu encontraria duas figuras que tinham muito importância para mim. A primeira delas era a grande Ártemis, a esplendorosa deusa da caça, adoradora da lua. E a outra era a do mais amado apóstolo de Jesus, João, que naquele lugar recebeu a revelação do livro sagrado do Apocalipse.

Patmos é uma das muitas ilhas do belíssimo mar Egeu. Tem pouco mais de 36 quilômetros quadrados e uma população que não passa das três mil almas. Ali, o ponto onde acorrem os turistas é a famosa caverna onde João teria escutado a voz de Jeová. E ali está ela, no alto da formação rochosa, com uma deslumbrante vista para o mar. Mas, o que era no ano 95 D.C. apenas uma cova no alto da montanha, agora é um lugar de peregrinação dos cristãos. A caverna se mantém, mas lá dentro há um belíssimo altar, com os famosos afrescos bizantinos.

Envolto em prata está o buraco onde João descansava a cabeça e também o outro onde ele colocava a mão para erguer o corpo já envelhecido. Também se vê uma espécie de púlpito, entranhado na rocha, lugar que teria servido de apoio para o escrivão do apóstolo, o jovem Próforo. No alto da caverna pode-se ver a rocha fendida, dizem, pela voz troante do próprio deus pai. Lá dentro são proibidas as fotos e as gentes entram e saem em profusão. Praticamente não há tempo para um encontro místico com aquele que foi o amado do Senhor.
A caverna de João agora está protegida por uma imensa fortaleza, dentro de cujos muros está um enorme mosteiro, construído por Alexandre I em 1.088, logo depois do cisma da igreja que resultou na divisão entre a Igreja Católica Romana e a Ortodoxa.

Ali, durante muito tempo, esteve guardada uma grande biblioteca, considerada a mais rica dos países balcânicos. Hoje, no museu que fica dentro do mosteiro, é possível se ver coisas como parte do evangelho original de São Marcos, escrito em pele de cabra, a carta do imperador Alexandre I autorizando a construção do mosteiro, o Livro de Jó, e um livro pintado à mão de Gregório da Capadocia, além de outras relíquias da igreja ortodoxa. Também no mosteiro é possível observar a diferença radical que existe entre a arte católica, baseada em temas, e a bizantina (oriental), que se concentra nas figuras humanas, sempre retratadas de forma muito simples, mais voltada à espiritualidade.

Na ilha de Patmos seguramente 100% das pessoas professam a fé cristã. Já quase ninguém se lembra da deusa originária, Ártemis. Por isso, quando, no meio do mosteiro cristão, eu insisti em saber da deusa, a guia mostrou-se hesitante. “Já ninguém mais fala dos deuses antigos”, disse, incomodada. Depois, num átimo, lembrou-se que sua mãe chama-se Artemísia, coisa que deveria ser em memória da deusa. E mais surpreendida ainda contou que se chamava Vera, nome da filha de Glauco, a mais amada sacerdotisa de Ártemis. “Não sei se minha mãe pensou nisso quando me deu este nome”. Eu, já tomada pela energia da deusa, entendi que sim. Ali estava viva, a cultura originária, ainda que subsumida pela cristandade. Vera contou também que o lugar onde pisávamos - o chão de mármore do mosteiro - era herança dos tempos antigos. Bem ali era o templo de Ártemis, que foi destruído para que se fizesse o mosteiro, embora a base permanecesse. Lembrei de nossa América Latina, dos templos maias, astecas e incas, todos derrubados, dando lugar a igrejas, com os deuses sendo solapados pelo deus cristão. Tudo tão igual.

Mas, ainda que soterrada, a cultura antiga encontra seu lugar no museu do mosteiro. Num cantinho, alguns mármores do velho templo da deusa da caça estão expostos. A linda Ártemis vive no seio do mundo ortodoxo cristão. Lá fora, o vento forte anunciava o cair da tarde, o mar Egeu, espaço de Posseidon, se agitava. Saímos impregnados daquela profunda impressão, causada pela mistura de duas culturas tão distintas, que simbioticamente convivem. Ártemis, não mais cultuada, mas não esquecida e João, o apóstolo, com sua visão de fim de mundo. Dois guerreiros, enfim. Ainda em luta no coração dos gregos.

No alto do mosteiro, estas duas culturas pareciam mesmo vivas. De um lado, os austeros monges, com suas sotainas pretas e barbas grandes. Do outro, Vera, a guia, vestida numa túnica branca, vaporosa, a própria imagem da deusa. Em pleno século XXI eu via Ártemis, na porta do mosteiro, a acenar. A caçadora ainda não fora vencida! Lá, como cá, os deuses antigos assomam, ainda que não se queira.

As mulheres originárias


A cidade nos reserva surpresas inauditas. Andando apressada em direção ao almoço, cabeça baixa, cheia de minhocas a minhocar, de repente, eu as vi. Estavam ali, lado a lado, no chão, em meio à algaravia das gentes que passavam rumo ao centro de compras da Trindade. Cada uma delas oferecia, no mercado, o produto que lhes permite seguir tocando a vida. Uma expunha os ecos de sua cultura milenar: cestos, maracás, colares, bichos de madeira. A outra, exposta ao turbilhão do sistema, oferecia lenços da moda. Todas duas tinham ao lado uma criança, a lhes exigir cuidados. Tão perto e tão longe.

As mulheres com as quais me deparei eram uma guarani e uma kichwa, respectivamente do Brasil e do Equador. Duas originárias, filhas legítimas da terra de Abya Yala. A guarani vive no morro dos cavalos, na aldeia, e vem todos os dias tentar ganhar um troquinho que trocará por comida. A kichwa vem de Cotopaxi, com um grupo grande de migrantes que saiu do Equador em busca de vida melhor. Os maridos, filhos e parentes cantam e dançam nas ruas enquanto elas vendem produtos da moda comprados em quantidade.

As duas mulheres originárias estão ali, na esquina da UFSC. Estão perto, mas não se falam. Vivem cada uma no seu mundo particular, sem comunicação. Sem se dar conta, talvez, que são irmãs, iguais na condição de povos primevos, donos desta imensa terra. Estão na rua, sentadas no chão frio, esperando que algum passante apressado se interesse pelos seus produtos. Disputam a calçada de um lugar que lhes pertence.

As mulheres originárias não se conhecem, não se olham, não se falam. Submetidas estão ao modo de ser ocidental, de competição e indiferença. As mulheres originárias precisam se conhecer, e saber... Hoje o dia passou, mas segunda-feira eu vou apresentá-las! Alguma coisa haverá de mudar naquela esquina da UFSC...