Povos originários: uma luta sem fim



O cinismo tem sido a marca registrada das autoridades e das pessoas “de bem” quando se trata da questão indígena. O exemplo mais cabal disso é a declaração do novo presidente da Funai, Antonio Fernandes Toninho Costa, indicação do conservador Partido Social Cristão, que declarou: “chega de assistencialismo, agora é preciso ensinar o índio a pescar”. Cinismo e mau caratismo, poderíamos agregar. Desde a invasão, em 1500, que a bíblia vem sendo usada pra oprimir e destruir, bem como o discurso de “integração” tem servido para tentar apagar as culturas originárias.

A história do Brasil ainda precisa ser contada sob o ponto de vista dos povos originários. Mas, por enquanto, o que vigora é a visão do colonizador. Um Brasil “descoberto”, uma gente “inútil”. Para Cabral e seus parceiros, era impossível que povos inteiros vivessem numa terra tão rica sem se importar com a riqueza. Ao contrário de espaços geográficos como México e Peru, onde vicejavam civilizações, na região conhecida como Pindorama as etnias eram coletoras e caçadoras. Não haviam ainda conformado estados ou macro etnias. Como bem conta Darcy Ribeiro,no seu livro “ A civilização brasileira”  por aqui vicejavam as micro etnias, cada uma com seus usos e costumes. Sua onda era guerrear, caminhar pelo território, viver a larga.

Por isso a chegada dos homens barbudos e vestidos de veludo foi uma alegre novidade. Recebidos com hospitalidade, os portugueses não se importaram em saber quem eram aquelas pessoas, o que pensavam, com o que sonhavam e como viviam. O único intuito dos “descobridores” era encontrar ouro e riqueza. A cultura do saque, como bem mostra Manoel Bomfim, fez morada nesse espaço de belezas.

O primeiro contato foi de enganação. Depois a escravidão. Como os originários não se prestaram à servidão, veio o tempo do massacre. O povo da terra era inútil para os portugueses. Não eram empreendedores, não ligavam para o ouro, não queriam o progresso. Só queriam viver a vida e seguir o rumo natural da sua evolução. Só que a conquista foi uma cunha, poderosa e ferina.

Pelo mar chegaram os ladrões e os homens de deus. Com a cruz, buscavam a salvação dos gentios, sem levar em conta de que eles tinham seus próprios deuses e crenças. Impuseram a fé católica no ferro e no fogo.

Assustados com o terror imposto pelos brancos, os originários foram se internando no Brasil profundo. Mas os brancos eram insaciáveis. Não bastava roubar as terras do litoral, era preciso entrar pelo interior e seguir com o saque e o roubo do território. Foram 400 anos de extermínio. Os originários não se prestavam ao trabalho. Eles eram livres. Então, que morressem. E assim foi. Pelo mosquete, pela cruz e pela doença, assim foram sendo dizimados povos inteiros.

Foi só no início do século XX que o Marechal Rondon, um positivista humanista, decidiu que era preciso acolher os que sobraram, integrar à sociedade, ao novo mundo que se formara nessas terras. E ele adentrou pelo Mato Grosso, Goiás, Amazônia. Tinha um lema: morrer se preciso for, matar, jamais. E assim foi conquistando a confiança de muitas etnias. O problema é que nem todo mundo era Rondon, e a expansão das fronteiras agrícolas e extrativistas  também levavam para as terras indígenas os homens brancos sanguinários e assassinos.

Quando o século XX completou sua metade,  os originários eram pouco mais de 150 mil almas. Muitas etnias tinham desaparecido por conta da violência e do roubo. Havia quem previsse a completa extinção “dessa gente”. Os que sobraram estariam integrados na sociedade, vivendo como brasileiros.

Mas, isso sempre foi uma ilusão do conquistador. O poder era tão grande e o estrago também, que a arrogância já não tinha limite.  O Brasil era uma nação, embranquecida pelo imigrante e pela miscigenação, acreditavam.

Só que enquanto nos gabinetes se celebrava o fim dos povos originários, eles tramavam nos recônditos do país. Organizavam-se, uniam-se, cresciam. E avançavam na luta por território e direitos. Nunca haviam se integrado. Mudaram, é fato, porque foram obrigados a viver no mundo que não era deles. Aprenderam os códigos, sobreviveram, mas nunca esqueceram sua essência. Nas noites claras de lua eles ensinavam seus filhos e netos na tradição, contavam histórias, passavam conhecimento. Darcy chamou isso de transfiguração étnica. Eu chamo de técnicas de sobrevivência na selva branca.

Os povos jamais esqueceram suas raízes, seus deuses, suas tradições, sua filosofia e cosmovisão. Guardaram a sete chaves, repassaram de geração em geração, na memória oral, nas casas de reza, longe da compreensão do homem branco.

E quando todos pensavam que eles já estavam “aculturados”, eles assomam com suas línguas, seus ritos e suas reivindicações.

Não há que ensinar a pescar ao índio. Não há. Ele é quem pode ensinar ao arrogante homem destruidor de tudo que há uma chance de sobreviver nesse mundo, homens, bichos, plantas, planeta vivo. Na harmonia com a Pachamama, no respeito e no cuidado. É o ensinamento que pode salvar o mundo.

Mas, de novo, os invasores seguem acreditando que os originários são um atrapalho ao progresso. “Um povo que não se ajuda”, como definiu um morador de Florianópolis ao referir-se aos originários que reivindicam um lugar para ficar durante sua estadia na capital para a venda de artesanato. Um povo que não se ajuda? Como assim, cara pálida?

Imagine que tu tens um lugar, onde tu vives com tua família. E vem um povo, do nada e te rouba, e mata teus parentes, teus filhos, te expulsa, te confina em reservas como se fosse um bicho, exposto à caridade, tira toda a materialidade que define teu modo de vida. E tu queres o quê? Um povo que não se ajuda?

Os homens e mulheres, filhos originários dessa terra não precisam de tua comiseração, nem de teu anzol, nem de teu peixe. Eles estão determinados a conquistar o lago, garantir suas terras, seu jeito de viver. E estão em luta. Essas pessoas que tu vês nas ruas, vendendo cestos e bichinhos de madeira não estão te pedindo nada. Estão mostrando quem são, evidenciando sua cultura e seu trabalho. Um trabalho ao qual foram obrigados porque lhes tiraram as terras e a vida. Não é proposta do Guarani, ou do Xokleng ou do Kaingang vir para a cidade vender aquilo que é a essência do seu ser. Não é. Apenas ele é obrigado a isso por uma sociedade que já tornou até a sua cultura uma mercadoria passível de ser explorada.

Então não venham com suas bíblias, como nos tempos da colonização, dizer o que é certo ou o que é errado. Não venham vomitar um deus que ao longo dos séculos, para eles, foi um deus de destruição, morte e violência. Ninguém que sofreu a dor de ver sua cultura destruída quer viver no céu dos cristãos. Como Hatuey, o grande cacique Taíno, que foi preso e esquartejado por que não  quis tornar-se cristão. “Se eu ficar cristão vou encontrar essas pessoas no céu?”, perguntou ao padre jesuíta que o torturava. “Sim”, respondeu o padre. “Então danem-se, eu não quero estar com essa gente. Jamais serei cristão”.

É isso. Danem-se. É mais do que hora de as gentes entenderem que os originários têm direitos. Que eles precisam de seus territórios, que são mais do que terra, são espaços sagrados. Eles precisam e vão tomar. Por bem ou por mal. Pode vir o agronegócio, os jagunços, as balas, a PEC 215, o escambau. Eles vão tomar. Não adianta espernear. Pode vir Temer, Funai, Igreja Universal, padre católico, o que for. Esse povo sobreviveu cinco séculos, no silêncio de suas moradas secretas. E estão aí.

Se não gostam de vê-los pelas ruas, danem-se! Se não entendem seu modo de vida, estudem e aprendam. Como diriam os zapatistas: “nunca mais o mundo sem nós”. E é isso!
As prefeituras vão ter de garantir espaço e segurança quando eles quiserem andar e vender seus artesanatos. Tiraram tudo deles e agora quem o quê? Que eles aceitem o roubo de suas terras e de suas vidas. Não vão aceitar. Não aceitam. Estão aí e estão em luta. Seu silêncio não é subserviência nem medo. Seu silêncio é força e resistência.   

Aprendam e preparem-se.


Originários da Austrália, o horror ainda segue



Eles são os povos mais antigos da humanidade. Os originários australianos. Estão ali naquelas terras desde há 50 mil anos. Seus antepassados foram os primeiros humanos a cruzarem o oceano desde a África e fixaram-se na Austrália e Papua Nova Guiné, permanecendo isolados até quatro mil anos atrás. Não tem sido fácil a luta desse povo para proteger suas terras e preservar sua cultura. Segundo suas tradições, os aborígenes australianos se concebem como uma raça de heróis arquetípicos que viajaram por uma terra em formação esculpindo lugares sagrados por onde passavam. Eles vivem o que chamam o “tempo dos sonhos”, momento de criação no qual sonharam os padrões que dão forma ao mundo. Esse é um tempo prévio e posterior à vida, no qual o indivíduo existe eternamente.

Quando os europeus chegaram à ilha, no século 18, havia mais de 300 mil pessoas vivendo ali, divididas em pelo menos 500 grupos étnicos, comunicando-se num total de 300 línguas e 600 dialetos. Hoje sobrevivem cerca de 200 línguas, mas a absoluta maioria em risco de extinção. Apenas 20 se mantêm fortes.

A ocupação inglesa na ilha foi violenta, eivada de massacres, com a decretação de leis discriminatórias que perduram até hoje,  e a tentativa de destruição da cultura e da religião animista praticada pelos aborígenes. Os colonizadores também violaram e destruíram locais sagrados, além de praticar a caça justamente aos originários, que eram vistos e tratados como animais.

Mesmo com a independência da ilha em 1900, os ingleses que dominavam o país seguiram tratando os australianos originários com a mesma discriminação. Nessa época – entre 1910 e 1970 - que ficou conhecida como a da “geração roubada”, os que buscavam criar uma nova nação branca – e aqui já estavam também os neozelandeses - praticaram as maiores atrocidades contra os povos autóctones. Uma delas, a mais perversa, era “confiscar” crianças originárias de pele mais clara para serem educadas em centros educativos, visando incutir nelas a cultura ocidental, roubando-as de suas tradições.

Os lugares, espécies de reservas, onde viviam os povos originários, eram visitados sistematicamente em busca dessas crianças e, uma vez encontradas, as que tinham traços menos marcados e a pela mais pálida, eram sequestradas por agentes do governo. Uma violação que existiu até os anos 70 do século passado. Mais de 100 mil crianças tiveram esse terrível destino. A prática foi cunhada pelo governo racista de “política de assimilação”. Centenas de famílias foram destruídas com essa ação governamental e até hoje as comunidades vivenciam essa dor, porque muitas das crianças que foram levadas jamais voltaram para casa. E as que foram obrigadas a essa violência ainda hoje sofrem as consequências.

A experiência dessas crianças nos chamados centros educacionais também foi dramática. Nomeadas como “negras”, “macacas” e “lixo”, não havia um dia que não eram cuspidas e humilhadas pelas crianças brancas. Além disso, tinham o corpo inspecionado todas as manhãs, diante da turma, para ver se tinham tirado a “sujeira” que nada mais era do que sua cor.

Os povos originários da Austrália até os anos 60 do século passado tampouco podiam participar da vida do país, sequer tinham direito a voto. A política de assimilação e destruição chegou a colocar esse povo quase em extinção. Em 1945 eles eram apenas 40 mil almas.

O objetivo maior dos brancos era o roubo das terras. Naqueles dias eles visitavam as comunidades, ofereciam presentes e festas. Durante a festa era colocado arsênico na comida e na água, prática que dizimou aldeias inteiras. Quando não matavam diretamente, introduziam nas comunidades o uso do rum, fazendo com que se embebedassem e brigassem entre si.

Com o passar do tempo, os originários foram se integrando à vida do país, principalmente pelo trabalho, mas igualmente enfrentavam a discriminação, sendo considerados preguiçosos e incapazes. Mas, por sua pele mais escura, resistam mais ao sol enquanto os brancos queimavam. Por conta disso eram tolerados.

Hoje, depois de muitas lutas travadas, os povos australianos já conseguiram garantir alguns direitos, mas seguem sendo vistos como seres de segunda classe. Seus salários são três vezes mais baixo que os dos brancos, o desemprego entre eles é maior, a taxa de mortalidade infantil é alta e a média de vida baixa. Menos de 30% dos originários completam o nível superior e a maioria segue isolada em lugares bem longe da cidade. Eles são animistas e gostam de se concentrar onde tem água, em acampamentos temporários. Acreditam que o ser humano é só mais um no universo de seres com o ser supremo. Desfrutam e partilham a natureza.

Quase chegando à extinção eles vêm crescendo desde o final do século passado e hoje já são 2% da população, pouco mais de 400 mil. A maioria ainda vive no interior, mas muitos conseguem se virar bem na cidade. O problema mais grave nas comunidades – herança nefasta dos colonizadores – é o alcoolismo e a violência, coisa que vem sendo combatida justamente com recuperação das tradições.
É incrível que tudo isso tenha acontecido naquelas remotas terras sem que o mundo se levantasse em protesto. Os aborígenes enfrentaram tudo isso sozinhos até bem pouco tempo e hoje lutam para manter viva a sua cultura, bem como a posse de seus territórios sagrados. Em 2008 o primeiro ministro do país chegou a pedir desculpas pelo massacre sistemático e pelo roubo das crianças, mas não foi um pedido formal, uma vez que isso poderia acarretar pedidos de indenizações. Até nisso foram cínicos.

Há muito ainda para ser conhecido e reparado na relação com os legítimos donos da Austrália. Mas essa é uma luta que segue a passos largos. Num dos países mais ricos do mundo, os verdadeiros donos da terra ainda precisam mendigar. Nada muito diferente das condições dos demais povos originários dos países que viveram colonizações violentas, como é o caso também da América Latina.

Xetá e Kaingang: Retomada é luta

Material produzido pelos indígenas Xetá e Kaingang, da região de Curitiba, durante a oficina ministrada por Rubens Lopes e Cris Mariotto, dentro do Projeto Indígena Digital coordenado pela professora Beatriz Paiva, do IELA.

Povo Terena: Mãe Terra

Material produzido pelos indígenas Terena da região do Mato Grosso do Sul, durante a oficina ministrada por Rubens Lopes e Cris Mariotto, dentro do Projeto Indígena Digital coordenado pela professora Beatriz  Paiva, do IELA.

EUA: recomeça a luta do povo Sioux


Depois de intensa luta por parte dos povos originários dos Estados Unidos, especialmente o povo Dakota, conhecido como Sioux, o final do ano passado trouxe vitória. O oleoduto que estava sendo construído, passando pelas terras sagradas dos Sioux teve sua construção interrompida. A decisão de não seguir com as obras naquela região foi do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, convencido não apenas da reivindicação dos povos originários sobre seu território sagrado, mas também do fato de que o oleoduto seria extremamente perigoso para o ambiente, visto que passaria por baixo do lago Oahe. Há uma longa lista de documentos comprovando que obras semelhantes seguidamente têm vazamentos e o óleo se expandido pelo lago poderia causar sérios prejuízos à região.
Assim, depois de muitas batalhas e repressão violenta, tanto por parte das forças policiais como dos seguranças da obra, os indígenas de todo mundo que acorreram a Standing Rock para apoiar o povo Sioux, finalmente puderam celebrar a retirada das máquinas e a proteção do território. 
Mas, poucos dias depois de assumir, o novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, encaminhou ao Corpo de Engenheiros uma ordem para que deliberassem pelo retorno das obras. Esperava-se que os engenheiros iriam manter a coerência já que a suspensão não foi política, mas técnica. Isso seria esperar demais. 
Nessa semana o Corpo de Engenheiros do exército anunciou que vai aprovar a etapa final da construção do oleoduto de Dakota Acess. Numa carta ao Congresso, o secretário interino do Exército, Robert Speer, afirmou que já está suspenso o estudo de impacto ambiental  do oleoduto e que a empresa Energy Transfer Partners poderá recomeçar as escavações no lago Oahe, no rio Missouri, que o mais importante da região. 
Não bastasse essa decisão de reiniciar a obra, o Corpo de Engenheiros também anunciou que sequer vai esperar o período de 14 dias que é dado para o início dos trabalhos. Ou seja, a empresa pode começar imediatamente a perfurar o túnel de quase dois quilômetros na reta final do oleoduto que passa por baixo do lago. 
Nos dias do anúncio da suspensão da obra, os indígenas e ativistas que estavam acampados em Standing Rock já sabiam que caso houvesse mudança no governo, as coisas poderiam reverter, por isso permaneceram mobilizados. Agora, toda a luta terá de ser reiniciada também, inclusive com a retomada do acampamento. O presidente do conselho da tribo Sioux, Dave Archambault falou sobre as obras: “Nos derrubaram novamente, mas voltaremos a ficar de pé. Vamos superar a ambição e a corrupção que existe e nos acossa desde o primeiro contato. Convocamos todas as nações nativas dos Estados Unidos a lutar juntas e unidas”. 
A grande batalha dos Sioux e dos demais povos indígenas que estão em luta é pela proteção da água. Um oleoduto passando pelo lago Oahe se reveste em grande perigo para o ambiente e para o grande rio Missouri. Além dos indígenas de toda a América Latina que estiveram e voltarão ao acampamento de Standing Rock, outros ativistas populares e das causas ambientais também retomarão a luta, tanto no campo legal como da ação política. 
Standing Rock segue em pé!