Por que correram, deputados?



por elaine tavares - jornalista

As comunidades indígenas do Brasil estão em processo de crescimento. Desde 1991 , segundo mostraram os dados do IBGE, o aumento da população foi de 205%. Hoje, o Brasil já contabiliza 896,9 mil índios de 305 etnias, e em quase todos os municípios (80%) tem alguma pessoa autodeclarada indígena. Até mesmo alguns grupos já considerados extintos, como os Charrua, se levantam, se juntam, retomam suas raízes, formam associações e lutam por território. Isso significa que a luta que vem incendiando a América Latina desde o início dos anos 90 já chegou por aqui.

Não é sem razão que causou tanto estupor a declaração dos Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, de resistir até o último homem caso forem retirados de suas terras. É que as comunidades já estão fartas de conversinhas e promessas governamentais. Querem ver seus direitos garantidos agora e estão dispostos a lutar. Isso também coloca todo mundo em polvorosa, porque, de certa forma, quando os índios estão quietinhos nas aldeias, são muito bem vistos. Mas, bastou levantar o tacape para que os racistas e reacionários de plantão já se alvorocem. É o que acontece hoje em Santa Catarina, quando é chegada a hora da desintrusão da terra indígena do Morro dos Cavalos. Aceitos por vários anos, vivendo em condições precárias em poucos hectares, agora que tiveram as terras definitivamente demarcadas e lutam pela desocupação do território, provocam o ódio de comunidades pacatas e cheias de "gente de bem". 

Também é o que se vê na luta contra Belo Monte e as demais hidrelétricas que poderão destruir boa parte da vida no Xingu. As revoltas das comunidades indígenas e ribeirinhas incitam os velhos ódios e não faltam as vozes a clamar contra o que chamam de "obstáculos ao progresso". Já as fazendas de gado e de monocultura que destroem pouco a pouco a Amazônia são vistas como "desenvolvimento". Da mesma forma foram julgados como baderneiros e oportunistas os indígenas que ocuparam e resistiram na Aldeia Maracanã por sete longos anos, querendo unicamente preservar um espaço histórico. Foram retirados à força, como se fossem bandidos.

Agora, os ataques vem do governo e do Congresso Nacional, no qual tramita uma proposta de mudança na Constituição, a PEC 215. Essa proposta tem por objetivo transferir para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação das terras indígenas, criação de unidades de conservação e titulação de terras quilombolas, que até então é de responsabilidade do poder executivo, por meio da Funai, do Ibama e da FCP, respectivamente. A aprovação da PEC põe em risco as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza toda e qualquer possível demarcação futura.

Além disso também está em vigor a portaria 303, da AGU, que define que qualquer terra já demarcada pode ser revista e tirada das comunidades, basta que dentro delas haja algo que seja do interesse dessa gente sempre pronta a sugar as riquezas do país (minérios, petróleo, rios). Ou seja, é a forma moderna de dominação dos mesmos velhos opressores. Se antes eram os arcabuzes, agora é a lei. E o que é mais espantoso, uma lei que viola a Carta Magna. 

Por isso é que os indígenas brasileiros organizados decidiram fazer uma ação em Brasília, junto aos deputados. Sabem que não dá para confiar numa casa cujos habitantes foram eleitos por grupos econômicos que sistematicamente vêm rapinando as riquezas da nação e, portanto, não hesitarão passar por cima de comunidades inteiras se isso for necessários aos seus interesses. E tanto isso é verdade que ontem (dia16.04) eles estavam lá, tentando conversar, tentando entrar na casa que dizem, é do povo. Mas, estavam impedidos. Só que decidiram não aceitar uma imposição sem sentido. Se a casa é do povo, entrariam. E foi o que fizeram. Forçaram a porta e adentraram ao plenário, onde os engravatados os ignoravam. 

A cena protagonizada pelos deputados seria risível se não representasse claramente o que pensam dos índios. Os engravatados correram, desesperados, quando viram um pequeno grupo de indígenas avançando  em danças rituais pelo meio do plenário. Para eles, aqueles homens e mulheres nada mais são do que selvagens, perigosos e ameaçadores. Não conseguem os ver como cidadãos brasileiros, iguais a eles em direitos e deveres. Os deputados correram por que? De medo? E por que teriam medo? Porque sabem muito bem o que fazem e como tratam os povos indígenas nesse país.

A vergonhosa correria rendeu frutos aos indígenas. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), acabou propondo uma saída honrosa. A casa suspenderia  a criação da comissão especial que iria apreciar o mérito da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 e criaria  um grupo paritário para discutir os temas de interesse dos povos indígenas. Os índios reunidos no Salão Verde conversaram e deliberaram aceitando a proposta . 

Agora é vigiar porque esse não vai ser um debate fácil. Tanto o governo como os grupos de poder que financiam a maioria dos deputados querem poder dispor das terras indígenas que estão cheias de riqueza. Mas, o fato é que a ação do "abril indígena" conseguiu pelo menos colocar em pauta um tema que já vem caminhando desde anos e não recebe a devida atenção nem pela mídia nem pelos deputados. Foi uma vitória, parcial e temporária, mas ainda assim uma vitória. O que prova por a + b que só a ação direta e organizada faz a vida das gentes avançar. E, para aqueles que estão aí, na luta sempre, a cena do apavoramento dos deputados deixa muito claro que eles sim, têm medo, embora não tenham prurido de destruir sistematicamente o modo de vida dos povos indígenas. A lição do abril indígena é singela: é preciso fazer com essa gente que não leva em conta os desejos das maiorias voltem a ter medo delas. A luta de classes avança por aqui também...     
  

Aldeia Maracanã - carta aberta ao povo


Carta aberta à imprensa e a todos que apoiaram à Aldeia Maracanã e o Movimento Tamoio dos Povos Originários:

“Existe um mundo ideal. Também existe o mundo real. Saber o tempo certo entre os dois e conseguir garantir que seus ideais não sejam completamente aniquilados é o que nos torna sábios.”



Em reunião no dia 23 de março no Hospital de Curupaiti em Jacarepaguá, as etnias indígenas Pataxó, Tukano, Guarani, Puri, Apurinã, Tupinambá, Kaingáng, e Sateré-Mauwé residentes na Aldeia Maracanã desde a sua ocupação em 2006, decidiram divulgar nota à imprensa e aos diversos movimentos sociais que nos apoiaram nestes seis anos e cinco meses de resistência em defesa de um projeto indígena para o Rio de Janeiro, para informar os motivos da saída do antigo Museu do Índio, no dia 22 de março, após todas as tentativas da permanência naquela aldeia.

Importante recuperarmos como e porque foi formado o Movimento Tamoio dos Povos Originários, que planejou a ocupação do prédio na Mata Machado, antigo Museu do Índio, em 20 de outubro de 2006.

Há cerca de dez anos algumas etnias já realizavam um trabalho educativo nas escolas e universidades, com o objetivo de divulgar a história dos nossos povos contada por nós, desconstruindo os conteúdos deturpados da maioria dos livros didáticos. O amadurecimento sobre tal ocupação demonstrou a necessidade de termos um espaço para ampliarmos esse trabalho, bem como estimularmos a vinda de outras etnias.

Era necessário também dar visibilidade às nossas lutas, reivindicações e projetos realizados em escolas muito antes da Lei (11.645/08), que tornou obrigatória a inclusão da cultura dos indígenas nos estabelecimento de ensino. Portanto, nosso bem maior sempre foi a ampliação do projeto em curso em vários espaços neste estado. Ocupar o prédio tornou-se vital para aglutinar diversas etnias e garantir a visibilidade da cultura indígena

Várias reuniões foram feitas e a decisão de ocupar o imóvel do Antigo Museu do Índio, localizado no centro histórico de resistência Tupinambá e Tamoia contra a invasão portuguesa, foi a mais acertada. Ali estavam os espíritos de nossos antepassados e era chegada a hora de voltarmos para casa.

Organizamos o 1ª Seminário dos Povos Originários no auditório da UERJ e dali, saímos em caminhada para a Rua Mata Machado. A mãe natureza nos enviou uma chuva fina que ajudou a esvaziar as ruas do trajeto pensado, facilitando a nossa retomada, estremecida apenas pela surpresa do vigia que, assustado, apontou sua arma para nós. Dialogamos e mostramos que éramos indígenas e estávamos apenas voltando para a casa de nossos ancestrais pais. Ao cantarmos e dançarmos, ele se acalmou e nos alojamos naquele espaço sem luz, nem água, com entulhos espalhados por toda parte, com ratos, baratas e mosquitos. A alegria de retomarmos a aldeia de nossos ancestrais nos deixou felizes, apesar das condições precárias.

A cada dia, tínhamos uma batalha a vencer e durante todos esses anos tentamos negociar o direito da posse legítima do Museu abandonado pelo poder público. Outros desafios chegaram. Por ocasião da Copa, as ameaças constantes de desocupação para transformar aquele espaço em estacionamento, nos consumiram na luta contra tal proposta absurda, prejudicando o projeto de difusão da nossa cultura.

Solicitamos audiência com o Ministério da Agricultura, pois o prédio estava sob sua responsabilidade; fizemos contatos com diversos parlamentares estaduais e federais, buscando ajuda para a negociação pretendida; buscamos apoio de universidades, antropólogos, estudiosos e todas as entidades que acreditávamos que poderiam contribuir na busca dessa negociação. Portanto, reafirmamos nossa total disposição de negociar para a continuidade dos nossos objetivos de resgate e difusão da cultura dos povos indígenas, tornando aquele Museu um Centro de Referência de nossa cultura, nesta cidade que já foi palco de outras iniciativas violentas contra nossos parentes e citamos, por exemplo, o que fez o então governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, quando reuniu poderoso exército com gente da Guanabara, São Vicente e Espírito Santo, tendo como objetivo liquidar o último bastião da "Confederação dos Tamoios". 

Após o cerco e a rendição da fortaleza franco-tamoia, dois franceses, um inglês e o pajé tupinambá foram enforcados; 500 guerreiros foram assassinados a sangue frio e aproximadamente 1500 índios foram escravizados. As tropas vencedoras ainda entraram pelo sertão, queimaram aldeias, mataram mais de 10.000 índios e aprisionaram outros tantos. Os sobreviventes refugiaram-se na Serra do Mar e Cabo Frio.

Destacamos, pois, os motivos que nos fizeram escolher o caminho da negociação pacífica e não o caminho que colocaria em perigo não só a perda do nosso projeto, como também o que levaria às ações violentas como as que foram utilizadas naquele dia, espelho do que tem sido as formas de violência registradas na história dos povos indígenas em nosso país, há 513 anos, que lutaram e continuam lutando pela demarcação de nossas terras, do resgate de nossa cultura, pelo direito à educação e saúde diferenciada, pelo respeito à nossa dignidade:

* em primeiro lugar, sempre tratamos os nossos parentes com responsabilidade e zelo e nunca aceitaríamos que eles viessem das aldeias para entrarem em confronto com a polícia, que sabemos ser truculenta, a serviço do estado. Portanto, a responsabilidade que sempre tivemos com nossos pares em garantir a integridade física daqueles que têm em nós confiança nos motivou a aceitar uma saída pacífica para todos os integrantes da Aldeia; infelizmente, parte dos indígenas decidiu ficar e resistir, sem negociação.

* nosso projeto tem dez anos de existência, portanto, muito mais antigo do que a ocupação do prédio do Antigo Museu do Índio e esgotadas todas as formas de negociação pelo prédio, tivemos que fazer a “Escolha de Sofia” e optamos pela continuidade do projeto em outro espaço.

* diante da reintegração de posse do imóvel garantida ao Governo, o Secretário de Direitos Humanos Zaqueu nos cobrou uma posição visto que desde o dia 15 de janeiro tentava uma resposta sobre a proposta enviada ao Conselho da Aldeia Maracanã, afirmando que não havia mais tempo para a continuidade da negociação.

Queremos reafirmar que repudiamos a forma truculenta e desumana que fomos tratados pela Polícia Militar por determinação do governo, desrespeitando inclusive o que estava estabelecido no documento de reintegração. Exigimos retratação do senhor Secretário Municipal de Cultura, Sérgio Sá Leitão, que declarou na mídia seu pensamento preconceituoso e discriminatório contra os povos indígenas. Não admitimos que um Secretário de Cultura não entenda a importância do nosso movimento que primou todos esses anos em propagar a cultura indígena nas escolas inclusive do Município do Rio de Janeiro, fazendo um trabalho que deveria ser feito pela Secretaria de Cultura deste município e que nunca fez.

Reafirmar nossa trajetória histórica pelo dialogo e que somos povos pacíficos. Enquanto a polícia militar nos confrontava com spray de pimenta, bombas de efeito moral, balas de borrachas e armas sônicas, o que tínhamos para nos defender eram apenas nossos maracás e nossos cantos evocando nossos ancestrais.

Repudiamos toda e qualquer ação que tentou dividir as diversas etnias que por seis anos estiveram reunidas naquele espaço.

Queremos expressar a nossa emoção ao sermos recebidos de forma fraterna pelos moradores da Colônia Curupaiti, que são igualmente discriminados por terem tido hanseníase. Queremos dizer que estaremos juntos, desenvolvendo inclusive, junto com eles, um trabalho de combate a todas as formas de discriminação, mas não descansaremos até que o governo cumpra o acordo da construção da nossa Aldeia até junho deste ano.

MUKAMUKAU TAMOIO!

Assinam esta nota:

Carlos Tukano- cacique
Garapirá Pataxó-vice-cacique
Afonso Apurinã 
Caio Pataxó 
Dauá Puri
Dantiê Tupinambá
Elvira Sateré-Mauwé
Magangá Pataxó
Nativa Pataxó
Pacari Pataxó
Marize Guarani
Tehé Tupinambá
Vangri Kaingang