O massacre dos estudantes de Ayotzinapa: ação coordenada do terrorismo de Estado mexicano


















Por Diógenes Breda

O dia 26 de setembro de 2014 já está gravado na história do México como símbolo da dura realidade em que vive seu povo atualmente, tal como o massacre de Tlatelolco em 68 – lembrado a cada ano nas manifestações de 2 de outubro – simboliza o início de um período de repressão aos movimentos populares da década de 70.

O massacre de Iguala

Naquele 26 de setembro, em Iguala, uma pequena cidade do estado de Guerrero, estudantes da Escuela Rural Normal de Ayotzinapa regressavam de um boteo, atividade de arrecadação de fundos com o objetivo de financiar seu translado à cidade do México para a manifestação de 2 de outubro, em memória ao massacre de Tlatelolco. Após o fim da atividade, como de praxe, haviam conversado com motoristas de ônibus para que os levassem de graça de volta à sua escola, que fica na zona rural. No momento em que saíam da cidade em 3 ônibus, por volta das 20h30, efetivos da polícia municipal lhes fecharam o caminho. Dois estudantes desceram do primeiro ônibus para tentar conversar e explicar a situação. Foram baleados tão logo apareceram na mira dos policiais. Iniciou-se, então, um ataque de meia-hora aos ônibus em que os estudantes, todos desarmados, tentavam se proteger dentro do que pouco a pouco se convertia em uma peneira, tantos eram os buracos causados pelas balas dos fuzis AR-15 dos policiais. Percebendo que dentro daquele espaço não teriam chances de sobreviver, decidiram sair dos ônibus e correr a qualquer direção, pelas ruas de uma cidade que sequer conheciam. Aproveitavam o momento em que os policiais recarregavam suas armas. Enquanto estudantes dos dois primeiros ônibus corriam para salvar suas vidas, os que vinham no terceiro, por último, foram obrigados pelos policiais a descer do ônibus e a subir nas camionetes oficiais. Foram levados não se sabe pra onde, estão até este momento desaparecidos.

Algumas horas depois do ataque dos policiais, os estudantes começam a sair das casas onde tinham sido escondidos solidariamente pela população de Iguala. Caminham até o local do ataque para resgatar os corpos de seus companheiros e registrar os rastros de balas e de sangue. Convocam outras organizações e chamam meios de comunicação. Após a conferencia de prensa – em que dão a conhecer os fatos ocorridos, o número de feridos, mortos e desaparecidos – por volta da 00h30, madrugada do dia 27, chegam ao local da conferencia camionetes com civis armados e iniciam o segundo ataque. Novamente, cada estudante buscou desesperadamente se esconder pela cidade, dando início a uma caça a “qualquer um que parecesse estudante” que durou várias horas daquela madrugada. Dos dois ataques resultaram 6 mortos – um dos quais brutalmente torturado: lhe arrancaram os olhos e a pele da face ainda em vida –, cerca de 20 feridos e 43 estudantes desaparecidos.

O relato desse episódio brutal não saiu de nenhum jornal sensacionalista, mas da boca dos próprios estudantes sobreviventes. Suas vozes de denúncia se espalharam por todo o país e correram o mundo. Uma mescla de raiva e impotência toma conta dos mexicanos nestes dias posteriores aos massacre. O sentimento, no entanto, não é “contra o poder e a impunidade do narcotráfico, que penetra em todos os poros da política mexicana”, tal como replicam os grandes meios de comunicação. Não, o que o ocorre no México é algo pior: é o funcionamento pleno de um Estado terrorista que se utiliza de métodos legais e ilegais - onde o narcotráfico é apenas mais um “sócio” – com igual naturalidade para reprimir qualquer voz questionadora do povo organizado e semear o medo na população ainda desorganizada, para que saibam dos riscos de questionar o modelo econômico e político vigente no país. É nesse sentido que o massacre dos estudantes de Iguala não pode ser entendido como um fato isolado, mas como um crime de Estado, expressão de uma guerra de contra-insurgência de caráter preventivo cujo objetivo é garantir o funcionamento de um modelo de exploração do povo e do território mexicano sem paralelo na história moderna do país.

A interminável noite neoliberal mexicana

Os ventos de transformação que varreram a América Latina nos últimos 20 anos não sopraram por aqui. As classes dominantes e o imperialismo gringo trataram de impedi-lo. As tentativas eleitorais do candidato mais à esquerda, Andrés Manuel Lopez Obrador, foram bloqueadas por duas fraudes, em 2006 e 2012, e as organizações populares mais radicais foram duramente reprimidas – como a APPO, a Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, em 2006 – ou se encontram sob duro cerco, a exemplo do EZLN. O México, portanto, está longe de ser “um país zapatista” e a luta de Pancho Villa e Emiliano Zapata há muito não guia a construção desta nação. A “longa noite neoliberal” segue plena e o amanhecer ainda não aponta no horizonte. Enquanto, em 1994, Chávez saía da prisão para ganhar as eleições venezuelanas 3 anos depois, o México assinava o TLCAN, Tratado de Livre Comércio da América do Norte. Antes, em 1988, outra fraude eleitoral impediu a eleição de Cuauhtémoc Cárdenas, filho de Lázaro Cárdenas, e dá a presidência a Carlos Salinas de Gortari, considerados por muitos como o primeiro presidente neoliberal do país. Desde então, pôs-se em marcha um projeto de subordinação completa aos interesses do imperialismo estadunidense, que se concretiza na assinatura do TLCAN, com a participação das classes dominantes, políticos de alto escalão, sindicatos vinculados ao Estado, alguns setores empresariais beneficiados pelas políticas de privatização e, claro, os empresários do narcotráfico.



















Fonte: http://www.masde131.com

Podemos resumir o projeto neoliberal mexicano que se inicia naquele momento em torno a três eixos: a intensificação da superexploração dos trabalhadores por parte do capital estrangeiro e associado com a generalização das indústrias maquiladoras; o despojo territorial das comunidades camponesas e indígenas para exploração de recursos naturais; e privatização de um patrimônio estatal nada desprezível construído durante os governos nacionalistas. O narcotráfico, neste esquema, não é um setor à margem da economia, mas participa dela tanto na produção – e portanto na exploração dos trabalhadores, inclusive em setores como a mineração – como no despojo das comunidades para a produção de drogas ou para abrir passo a entrada de empresas estrangeiras. Sem falar na “economia formal” que este setor movimenta por meio da lavagem de dinheiro na construção civil, nos bancos, etc. Seja como for, o projeto neoliberal dilacerou o país nos últimos 20 anos. México ostenta atualmente salários menores que os praticados na China e um dos menores da América Latina. O poder aquisitivo real do salario mínimo caiu 78% desde 1987, segundo dados do Centro de Análise Multidisciplinar da Faculdade de Economia da UNAM, e 60% dos trabalhadores está na informalidade. As cifras sobre a pobreza também assustam: 50% dos mexicanos estão abaixo da linha da pobreza, segundo a CEPAL, número que tem crescido nos últimos anos (se reconhecemos os limites dos critérios de medição da ONU, podemos afirmar que, na realidade, a pobreza é ainda maior). Poderíamos seguir com a crise alimentar que conjuga os maiores índices mundiais de obesidade adulta e infantil com a desnutrição crônica, e faz do país o maior importador mundial de milho – triste destino dos povos que criaram o milho, las civilizaciones del maíz, e têm neste grão a base de sua alimentação e cultura – ; com a violência contra mulheres e jovens gerada por tamanha decomposição social; com a crise migratória mexicana e centro-americana...

 “Pienso, luego me desaparecen” 

Não é difícil perceber que tamanha violação da vida das maiorias só poderia ter sido imposta por meio da violência. Ainda mais no México, país onde a capacidade combativa do povo remete à luta contra o invasor espanhol e ao projeto de construção nacional, popular e democrática da Revolução Mexicana. E assim ocorreu. A cada impugnação popular ao avanços do projeto neoliberal, repressão e massacre. Em 1995, o massacre de Aguas Blancas, Guerrero. Em 1997, o massacre de Acteal, Chiapas. Em 2006, o massacre de Atenco, Estado de México. Em 26 de setembro de 2014, massacre de Iguala, Guerrero. E, entre esses massacres que circularam amplamente nos meios de comunicação por sua dimensão, estão as mortes e as desaparições silenciosas de milhares de líderes comunitários, trabalhadores, estudantes, jornalistas ou, simplesmente, de pessoas que levantam sua voz contra a opressão que sofriam cotidianamente. A dimensão da violência e a regularidade com que foi e segue sendo cometida não permite afirmar que se tratam de fatos isolados, de abuso de poder das autoridades policiais, prefeitos e governadores. Pelo contrário, há uma estratégia, pelo menos desde a década de 80, que emana do Palácio Presidencial e conta com a participação material e intelectual do Departamento de Estado estadunidense, cujo objetivo é evitar a ascensão de qualquer movimento que questione as bases da economia mexicana e o papel do imperialismo dos Estados Unidos na região, ao mesmo tempo que abre o país para os investimentos estrangeiros e o roubo dos recursos do país, tão importantes para elevar a taxa de lucro dos monopólios internacionais em tempos de crise capitalista mundial. Pouco a pouco, cada massacre tinha como complemento o aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento do país. Foi assim que na década de 90 se pode colocar em marcha o saqueio quase completo do patrimônio estatal mexicano: privatizou-se praticamente todo o setor bancário, siderúrgico, químico, de telecomunicações e de transportes.
Fonte: http://www.masde131.com

A “Guerra contra o narcotráfico” iniciada em 2006 com Felipe Calderón e aplicada cabalmente pelo atual presidente Enrique Peña Nieto é a culminação desta estratégia – já bem conhecida na Colômbia – em que a repressão aberta, as mortes, as torturas e as desaparições são mecanismos habituais para garantir a “paz social”, que neste caso não significa outra coisa que a acumulação de capital sem travas. Sob o argumento de combater a “delinquência organizada” – que, na verdade, foi um reordenamento de poder entre os principais cartéis, em favor daqueles apoiados pelo governo – , somam-se nos últimos seis anos 80 mil mortes e 20 mil desaparições. Praticamente todos os crimes permanecem impunes. É por isso que não podemos falar senão de um terrorismo de Estado que articula governos federal, estaduais e municipais, as Forças Armadas, grupos paramilitares e cartéis de drogas.

O mais triste, porém, é reconhecer que o projeto das classes dominantes foi e segue sendo bem sucedido. Não se pode explicar a facilidade com que se aprovaram em 2013 as Reformas Trabalhista e Educativa, nem como se aprovou a privatização de todo setor energético – que envolve eletricidade, petróleo e gás – neste ano sem levar em consideração a eficácia da estratégia repressiva do Estado mexicano sobre os movimentos e organizações populares na última década.

 O massacre dos estudantes rurais de Ayotzinapa não escapa a este panorama de violência estatal conscientemente aplicada. Eles, como a maioria dos estudantes das Escolas Normais Rurais do país, fazem parte dos que nunca se calaram frente ao avanço do capital sobre os direitos do povo mexicano, dos que nunca se curvaram aos poderosos. As Escolas Normais Rurais, criadas na década de 1920, na esteira das conquistas da Revolução Mexicana pela universalização da educação, são um semillero histórico de lutadores sociais. Da própria Normal Rural de Ayotzinapa surgiu Lucio Cabañas, um dos mais destacados líderes guerrilheiros dos anos 70. Aqueles estudantes eram, pois, uma ameaça ao modelo econômico excludente que vigora no país. Lutavam contra a precarização da educação rural, sabiam da importância destas escolas como a única possibilidade de educação para a juventude mais pobre do país. Como filhos de agricultores, eram também solidários e marchavam juntos com os movimentos camponeses e indígenas de sua região contra o despojo de suas terras. Por esses motivos foram, assim como milhares de outros lutadores sociais, alvos do terrorismo de Estado mexicano.




















Fonte: observadorglobal.com

A participação direta da polícia municipal de Iguala juntamente com o grupo paramilitar Guerreros Unidos está comprovada. O exército e marinha, que têm bases de operação no município, e as policiais estaduais e federais, em nenhum momento apareceram para proteger os estudantes. Foram coniventes com o crime. O prefeito de Iguala, do PRD, fugiu. O governador do Estado, também daquele partido, e o presidente Peña Nieto, do PRI, afirmam que o ataque foi um ato isolado e sequer responsabilizam seus altos mandos militares. Enfim, o povo sabe que todos são culpados, que se trata de um crime de Estado. No entanto, há uma impressão generalizada de que, uma vez mais, as investigações não levarão a lugar algum.

Solidariedade aos estudantes: uma nova ascensão das lutas populares?

O massacre aos estudantes normalistas despertou imediatamente a solidariedade de todos os movimentos e organizações da esquerda mexicana. No dia 8 de outubro uma manifestação de 20 mil pessoas lotou as ruas do centro de cidade do México, e dezenas de atos ocorreram em outras cidades importantes do país exigindo a punição dos culpados e a aparição com vida dos 43 estudantes desaparecidos. A semana do dia 13 de outubro esteve marcada pela paralização de 30 das maiores universidades mexicanas e vários atos estão marcados para as próximas semanas. A exigência imediata é o aparecimento com vida dos 43 estudantes desaparecidos e a punição dos responsáveis materiais e intelectuais da matança. “Vivos se los llevaron, vivos los queremos”, gritam os mexicanos em todo país.

























Cidade do México. Manifestação em repúdio ao massacre de Iguala, 8 de outubro de 2014 
Fonte: http://www.masde131.com

Mas em espaços menores já se fala em aproveitar o momento para reconstruir a unidade entre as organizações populares – tão numerosas quanto dispersas – e  partir para uma ofensiva contra o governo. Os principais disseminadores deste discurso são os próprios companheiros de aula e familiares dos estudantes desaparecidos. Eles sabem da importância de encontrá-los com vida, mas também sabem que, se não avançarem na construção de outro projeto de país, outros massacres seguirão ocorrendo impunemente. No curto prazo, porém, parece remota a possibilidade de uma nova ascensão de lutas populares generalizadas. Outras “explosões sociais” ocorrerão, certamente, devido à própria natureza perversa do capitalismo dependente mexicano, mas as tarefa que a conjuntura mexicana impõe à esquerda é uma das mais difíceis de todo o continente e requer muito mais do que denúncias aos atos terroristas dos governos em turno. Mesmo as resistências locais se mostraram incapazes de impedir a privatização e o roubo dos recursos estratégicos do povo mexicano.

Só resta, portanto, a saída mais difícil, porém a única efetiva: a construção de um projeto nacional de maiorias que logre acumular força para combater as classes dominantes – nas quais se inclui o narcotráfico – e bloquear a penetração do imperialismo estadunidense, que faz de tudo para que México siga sendo seu quintal. O PRD, partido que há alguns anos aparecia como alternativa, já está imerso no projeto dominante e não será um aliado nesta tarefa. Tampouco o novo partido criado por Andrés Manuel Lopez Obrador, o MORENA, aparenta uma saída pela esquerda, dada sua fixação pela via eleitoral e seu desdém pelo trabalho de base. O povo só tem a si mesmo, e só das suas mãos humildes pode nascer um projeto de otro México posible. Que em suas veias volte a pulsar o sangue de Villa e Zapata.

Veja o depoimento de um dos estudantes que sobreviveram ao ataque:

https://www.youtube.com/watch?list=PLfk71Rp386qjb5A38Bpatldih9vuX-EpE&v=W2yBb-4B5FI

Quando Bento Gonçalves se encontra com os Guarani














 Imagens do Parque Histórico General Bento Gonçalves












 Rio Grande do Sul. Beira do Rio Camaquã. 1600. Já ia um século da ocupação de Pindorama, mas ainda viviam pelas imediações do rio e da Lagoa dos Patos, os índios Guarani, chamados pelos brancos de Carijós, bem como os chamados Patos. Eles tinham avistado os primeiros homens brancos em 1532 quando uma nau portuguesa entrou pelo sangradouro da Lagoa dos Patos. Receberam os estranhos com hospitalidade. Durante muito tempo os interesses dos brancos se voltaram para regiões mais ricas e essas etnias seguiram vivendo em relativa paz. Quando raiou o século XVIII começaram a chegar algumas famílias propondo-se fixar no sul do novo mundo e os indígenas começaram a se mover. Muitos foram mortos, outros escravizados, e uma boa parte fugiu. No começo do 1800 a região já tinha vários agrupamentos de famílias dispostas a desbravar o que chamavam erradamente de “terra de ninguém”.

A chegada de Dom João VI ao Brasil em 1806 deu novo ímpeto para a ocupação de terras consideradas “vazias”, e muitos de seus apadrinhados conseguiram grandes fatias. Um deles foi o alferes Joaquim Gonçalves da Silva, que recebeu a Sesmaria do Cordeiro, na beira do mesmo rio onde se banhavam desde há séculos, os índios Guarani. Joaquim passou a ser dono de terras que a vista humana nem podia alcançar. As 400 braças de terra viraram quatro grandes fazendas: da Barra, do Brejo, Paraíso e Cristal. E foi ali, nas suas terras, que nasceu a cidade de Camaquã. O senhor das terras da beira do rio dos Guarani, mais tarde veio a ser o pai de um dos nomes mais cultuados no estado gaúcho: Bento Gonçalves, líder da revolução farroupilha (1835).

Por aqueles descampados, no que hoje é a cidade de Triunfo, nasceu Bento e foi na estância Cristal que ele iniciou sua trajetória de homem do campo e da guerra. Diz a sua biografia que seu amor era pelo campo, mas uma briga que acabou com a morte do oponente levou o jovem Bento a se alistar no exército. Peleou nas campanhas cisplatinas (1811-1812 e 1816-1821) e também na Guerra de 1825. Foi soldado obediente da coroa até 1834 quando foi denunciado como rebelde. Deputado eleito em 1835, ele lidera a Revolução Farroupilha que começa em 20 de setembro do mesmo ano e dura 10 anos, inaugurando a primeira república em terras portuguesas: a República Rio-grandense.

O tempo passou, a revolução passou, e a família de Bento seguiu dominando toda a região. A cidade de Camaquã cresceu e dela desmembrou-se outro município, em 1988: Cristal, que leva o nome da famosa sesmaria. A cidade é hoje conhecida por abrigar o Parque Histórico General Bento Gonçalves, criado em 1972, um espaço de 280 hectares de mata nativa, açudes, campos e banhados. Região de fundamental importância na revolução farroupilha o parque ainda revela as trincheira cavadas pelos rebeldes e guarda a réplica da casa original do general, na qual ele viveu os últimos anos de vida, hoje transformada em museu.

Pois é justamente esse parque que agora é alvo de uma outra batalha. Ali, surgiu a ideia de criar um espaço temático indígena, em honra dos povos que habitaram o lugar bem antes do homem branco chegar.

O espaço Mbyá Guarani

O projeto foi desenhado por Pedro Eginio Leites de Alexandre, hoje diretor do Parque, que é vinculado à Secretaria de Estado da Cultura. Como a região abriga atualmente duas Tekoas Mbyá Guarani, pareceu natural que o parque pudesse conter elementos culturais dessa etnia. Pedro lembra que em 2012 o museu do Parque Bento Gonçalves realizou uma exposição fotográfica em parceria com o Museu do índio, do Rio de Janeiro, chamada "Os índios de Darcy Ribeiro". Nesse evento, além da exposição, foi criada uma programação muito rica de ações educativas sobre a questão indígena. Por conta disso, foi realizado um seminário na cidade de Camaquã, que é a cidade polo na região, buscando disseminar o conhecimento sobre a etnia. Naquele oportunidade as comunidades Mbyá Guarani foram convidadas para participar do seminário e para expor sua arte e cultura. E foi a partir desse momento fecundo, de rodas de conversas, que foi se desenhando a ideia de criar um núcleo de preservação da cultura e de apoio aos povos indígenas.

A movimentação seguiu devagar e, mais tarde, foi criada uma ala indígena dentro do próprio museu Bento Gonçalves, para onde foi levado um acervo de cestaria que estava subaproveitado no Museu de Camaquã.  "Eu estava no museu de Camaquã montando uma exposição sobre Luiz Carlos Barbosa Lessa e vi o material. Me disseram que o material não tinha nada a ver com a instituição. Não me contive e pedi que cedessem os cestos para o nosso museus. Imediatamente me entregaram tudo", conta Pedro Alexandre. A partir desse material foi criada a ala Guarani dentro do Parque Bento, onde também foram realizadas outras ações educativas.

Pouco tempo depois, o governo do Estado trouxe uma família Guarani para conhecer o Parque, sem sequer saber que ali havia um trabalho de recuperação da cultura daquela etnia. Eles conheceram o museu e ainda deixaram alguns presentes que aumentaram o acervo da ala. Mais tarde, o diretor do parque, Pedro Alexandre, foi comunicado de que havia a intenção de alocar, dentro do território do parque, algumas famílias Guarani. Segundo os representantes do governo estadual, havia uma dívida com essa etnia, por conta de obras realizadas e desalojamentos e o espaço da velha sesmaria Cristal parecia um bom lugar para a comunidade.

Os dias se passaram e a comunidade chegou. Hoje são cinco famílias fixas e outras flutuantes, pois é da tradição Guarani o caminhar pelo território. Muitas ideias fervilharam na cabeça de Pedro Alexandre, mas foi no contato cotidiano com as famílias e as lideranças que começou a se delinear uma ideia que contemplasse a história do Rio Grande Farroupilha - representada pelo donos das terras, Bento Gonçalves, e um Rio Grande indígena. Foi um momento muito rico de construção de uma nova narrativa sobre a história do Rio Grande do Sul. Aquele espaço geográfico não começara com os "gaúchos". Era ocupado desde há dois mil anos por um povo que tinha uma organização política e uma rica cultura.

O espaço temático

Pedro conta como tudo pareceu se encaixar: "Se Bento Gonçalves conseguiu carimbar este chão com apenas 57 anos de vida, o povo Guarani poderia contribuir muito mais com sua história de dois mil anos. Era hora de dividir aquele espaço". Segundo ele, estava nas mãos dessa ação conjunta - Parque e Guarani - garantir a compreensão dessa história através de ações educativas e da organização de um acervo cultural.

Mas, enquanto no espaço do parque, os administradores e a comunidade Guarani sonhavam e arregaçavam as mangas para dar início a esse processo de recontagem da história, na cidade de Cristal começaram a aparecer os obstáculos. A prefeita da cidade moveu céus e terra para impedir a criação de um espaço temático Guarani dentro do Parque Bento Gonçalves. Houve até audiência pública, liderada por ela e com a presença de pastores de igrejas pentecostais, para discutir o tema. Jornais, rádios, meios de comunicação, tudo estava contra. Era como se misturar Bento com os Guarani fosse uma heresia. Foram dias difíceis, mais a proposta se manteve em pé e agora já está esboçado o projeto. "O povo Guarani é muito querido no trato com as pessoas. Assim, eles foram visitando a cidade, conversando com os moradores, e acabaram desarmando os espíritos. Hoje, boa parte daquele preconceito já se dissipou".

A ideia agora, que a foi apresentado para as Secretarias de Estado da Cultura, de Turismo, de Desenvolvimento Rural e de Educação, é criar essa ala temática Guarani bem no cerro do Cristal, espaço que guarda lendas do povo ancestral e que se destaca na paisagem de planície. É justamente no seu entorno que todo o espaço será articulado. Na proposta, construída em parceria com os Guarani e representantes de outras etnias indígenas, bem como com indigenistas, deverá ser erguido um pórtico de madeira bruta, servindo como portal de entrada de um mundo ancestral, mas que segue vivo na cultura. Haverá também uma cerca de madeira roliça, feita de eucalipto, conforme desejo dos Guarani, que envolverá o lugar, onde estarão as árvores sagradas, as plantas medicinais e os elementos que guardam as antigas lendas.

Também serão construídas algumas roças, ao estilo Guarani, mostrando o modo de vida comunitário e suas formas de produção. Haverá a demonstração da culinária indígena, a reprodução de uma casa tradicional para que se possa compreender a cultura que se expressa também na construção. Será construída também uma opy (casa de reza), o espaço sagrado da comunidade, onde tudo se cura e ilumina, onde o criador encontra as criaturas.

Ainda será construído um museu específico para a guarda dos elementos culturais e artísticos, um espaço para a mostra do artesanato e um centro de eventos que servirá para encontros, seminários, formação e tudo o mais que a comunidade definir. Esse museu deverá ter a forma de uma casa de joão-de-barro, pássaro típico da região. Haverá ainda espaço para as representações de divindades, dos anciãos, e do fogo da paz. Será erguida uma obra representando o guerreiro Guarani e serão incentivados os grupos de canto e dança.

Tudo isso já está no papel e em processo de preparação. É um grande desafio numa cidade conservadora que tem vivido esse tempo todo da lembrança do grande general farroupilha. Não é coisa fácil para os idealizadores do espaço temático convencer autoridades e comunidade de que as duas memórias podem caminhar juntos. É fato que Bento Gonçalves foi um grande líder, mas também é fato que aquela terra - antes da invasão portuguesas - já abrigou uma vicejante e bela cultura. Toda essa história pode hoje se cruzar e conviver. Isso torna a história um elemento crítico, capaz de alicerçar novos tempos. Compreender a cultura indígena, entender o que se passou e aceitar a presença dessas etnias nos seus espaços tradicionais é construir uma possibilidade concreta de paz. O que aconteceu a mais de 1500 anos atrás não pode ser apagado, mas é possível conviver em harmonia.

É nisso que apostam todos aqueles envolvidos no processo. No parque, tudo parece esperar por isso, as árvores, as flores, os bichos e as gentes. Não resta dúvida de que será uma experiência pedagógica de imenso valor. Não se duvida de que até o espírito do general que, segundo dizem, caminha por ali, já que era fazendeiro por vocação, possa também aprender com os ancestrais Guarani, o valor da vida em comunhão. E que fique claro. Não é uma proposta de  composição de classe, coisa que também nunca aconteceu enquanto Bento vivia. É a celebração de um novo tempo, um passo para a convivência harmoniosa de uma história que ainda está sendo escrita.