Indígenas ainda morrem por doenças facilmente tratáveis



por elaine tavares

Enquanto por todo o país se discute a trágica situação dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, e a situação de violência a que estão submetidos pelos fazendeiros e pelo Estado brasileiro, em outros espaços do país, seguem as lutas dos povos originários por condições mínimas de vida.

No sul do Amazonas, por exemplo, famílias das etnias Tenharin, Parintintin, Jiahui e Apurinã ocuparam a Casa de Saúde do Índio (Casai) e o Polo Base de Humaitá, localizados no município de Humaitá, a uma distância de 600 quilômetros de Manaus. Eles reivindicam melhorias na estrutura de atendimento à saúde das gentes que vivem na região. Segundo as lideranças o serviço é ruim e  não garante o deslocamento dos indígenas desde as aldeias. Há muita demora no encaminhamento para consultas, para realização de exames e não há remédios disponíveis. É sempre bom lembrar que muitas das doenças que hoje acometem os índios não existiam e foi só a partir do contato com as populações brancas que elas apareceram.  Daí a necessidade de tratamento que foge do tradicional. Mas, ainda assim, os governos, que já não têm primado por um bom serviço nessa área nem para as populações brancas, seguem marginalizando os indígenas.

O jornal A Crítica divulgou também que indígenas do estado do Amazonas vêm denunciando sistematicamente a falta de ação do governo no que diz respeito às demandas dos povos originários. Segundo dados dos próprios indígenas reunidos no Centro Amazônico de Formação Indígena, no ano passado o governo do Amazonas deixou de utilizar 48,3% das verbas disponíveis para a questão indígena - em torno de 232 milhões de reais, o que poderia ter contribuído para diminuir os problemas que as famílias enfrentam no que diz respeito a terra, educação e saúde.

No último mês de junho o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou uma pesquisa que mostra o quanto a situação dos povos originários se agravou depois da transição da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), estruturas federais que cuidam - ou deveriam cuidar - da saúde indígena. Segundo relatório da entidade são registradas mortes por doenças que poderiam ser facilmente tratadas. Conforme o Cimi, no ano de 2011 morreram 126 indígenas com idades entre 0 e 5 anos, simplesmente por falta de assistência médica. O Mato Grosso é o estado que lidera essa triste estatística, com a morte de 56 crianças da etnia Xavante, diagnosticadas com desnutrição, morrendo por diarreia ou pneumonia. O Amazonas vem em segundo lugar. Em 2012 já foram registradas 92 mortes. Olhando assim os números, não parecem muito expressivos em relação à população brasileira. Mas, para uma mãe que perde um filho, um único digito significa uma dor sem fim. Ainda mais quando essa morte é parte do descaso.

Nos demais estados brasileiros as reclamações com relação à saúde também são muitas. Falta aos profissionais da saúde a compreensão da realidade e da cosmovisão indígena, o que também contribui para a não eficácia de tratamentos. Para os indígenas, seria de fundamental importância que os profissionais - médico e enfermeiros - que são designados para o atendimento à saúde dos povos originários, pudessem ter alguma formação no campo dos saberes tradicionais, buscando aprender com os indígenas técnicas e tratamentos compatíveis com a maneira de ser das comunidades. Um diálogo generoso entre os cuidadores e os indígenas poderia reduzir em muito as mortes e o sofrimento.


Salvar os Guarani-Kaiowá?



Por elaine tavares - jornalista

Aprendi com meu irmão, há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a hipócrita (por vezes não intencional) musculação de consciência. E isso é coisa que acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou no meio da pirâmide social. Olham para o sofrimento dos pobres - a comunidade das vítimas do sistema - como se fossem coitadinhos, e sentem pena. Podem até chorar diante de uma foto ou de uma dada situação. E desde sua pena, buscam ajudar, musculando a consciência. Um quilo de arroz numa campanha para vítimas da enchente, um agasalho para as entidades filantrópicas, uma doação ao “criança esperança”. Depois, consciência musculada, voltam a vida normal, certas de que fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer: isso não é suficiente. Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.

Detectei essa reação nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento indígena. Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde há 500 anos vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus dominadores - em se purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga aberta do sofrimento de sua gente numa concreta vivência sacrificial. Ou lhes deixam viver nas suas terras, ou se matam, em grupo. Ato extremo, sofrimento extremo, decisão extrema. Então, como que atiçados pelo sempre excitante momento do sacrifício, as gentes brasileiras decidiram começar a falar do “absurdo” que é essa desesperada decisão. Assim, terminada a novela das oito, que segundo algumas vozes “parou o país”, agora as redes sociais e todos os que têm espaço de voz nos meios começaram a discutir a questão dos Guarani que estão prometendo se matar. Sinto aí certo cheiro de musculação de consciência.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último. Desde o momento em que os povos originários perceberam que a cruz e a espada que chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão, a luta pela manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus deuses e do seu jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização europeia, milhões de pessoas foram assassinadas, das formas mais cruéis, simplesmente porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as riquezas do novo mundo. Essa gente desesperada que hoje grita em agonia por um naco de terra onde descansar a cabeça, é a mesma gente que antes da invasão aqui vivia em fartura, nas grandes cidades como Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco, maiores e mais populosas que Madrid, Lisboa ou Florença no mesmo tempo. Eram homens e mulheres que conheciam a astronomia, a matemática, a hidráulica, a engenharia. Eram os que experienciavam uma forma de vida comunitária, na qual ninguém passava fome, no mesmo tempo em que na Europa medieval as pessoas padeciam de fome crônica. E foram eles os considerados sem alma, os passíveis de todo o tipo de selvageria e escravidão, porque não falavam a língua espanhola ou portuguesa e professavam outra fé, na variedade dos deuses.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que o que chegava pelo mar era a destruição. Não foi escutado. Mesmo assim se dispôs a lutar contra os espanhóis e só parou quando foi capturado e morto na fogueira. Foi vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu povo sido dizimado em castigo. Esse grito segue aí. Também continuam ressoando os gritos de Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520 igualmente iniciou a resistência contra os espanhóis que haviam assassinado milhares na cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que na região de Quito também se levantou em rebelião contra os que queriam destruir seu mundo e o dos seus. E o que dizer dos Tamoios no Brasil de 1562, que chegaram a constituir uma confederação para enfrentar a vilania portuguesa?

Pois essa gente tem gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis. Só que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde então.

Mas, como sempre acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram no engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade racista, patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres inferiores, mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura social. Índios, os seres sem alma.

Há poucos anos o país acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma imensidão de terra indígena que os originários lograram garantir para si. Quem não se lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade pensante? “Para quê tanta terra para índios? O que eles vão fazer com isso? Vão destruir tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos caridosos brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão aí, se arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das gentes que vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome de uma barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos piedosos argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a decadência, o anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso que virá com a devastação da Amazônia.

É que esses índios são os que, por estarem em grandes grupos e articulados com movimentos sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do seu modo de vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as armas inimigas que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas da mídia que fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do poder. Esses, os “arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da sociedade que fica em frente à TV musculando sua consciência.

Então, das entranhas do cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de Guarani-Kaiowá, que luta desde há anos por demarcação das terras, sofrendo violência, mortes, assassinatos, desaparição e o sistemático suicídio de seus jovens guerreiros, resolve usar a última arma que lhe resta: o próprio corpo, sua humanidade, o corpo coletivo de toda a gente. O drama dessas famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos Cimi, por jornalistas, por estudiosos, por todos os que se importam, mas nunca tocou o coração das maiorias. O ataque diário dos fazendeiros, a violência da justiça local que não os escuta, o preconceito e o ódio dos que vivem na cidade, picados pela ideia de que os índios só atrapalham o progresso, tudo isso é tema de debate e denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca houve piedade. As terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos índios. A vida foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso um ato extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse para esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a hora da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta, não fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito poucos, estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”. São apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos. Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros caiados. Sociedade apodrecida.

Arrisco dizer que os Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah, eles conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem disso para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas, eles não estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada nunca foi feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode se fazer real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o ladrão; diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o abandono de famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo preconceito que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que fazer? Se vida não há, porque preservar um corpo? A lógica da simplicidade.

E os Guarani-Kaiowá colocam a sociedade brasileira diante de um dilema também. Salvá-los não basta. Definir uma terra para aquelas famílias não significa o fim do drama indígena no Brasil. O apressado movimento dos atletas de consciência em demarcar áreas para essas famílias em particular não acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas áreas permanentemente em disputa entre indígenas e grileiros ou entre indígenas e Estado. Há que ultrapassar esse limite da resolução de um drama singular. Há que se colocar de frente com todos os conflitos. Há que se compreender a realidade indígena, conhecer seus costumes, seus deuses, seu modo de organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não pode ser só um ato a mais de musculação de consciência, praticado numa situação específica, com um grupo específico. O drama indígena em “nuestra américa”, inaugurado com a valentia de Hatuey, atravessando perigosas ondas do Haiti até Cuba para anunciar a desgraça e conclamar a união na luta, não se esgota naquele grupo de homens, mulheres e crianças que hoje assumem a condição de cordeiros de sacrifício. Os indígenas não precisam de nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só precisam ser respeitados nos seus direitos e na sua vontade de ser quem são.

Os Guarani-Kaiowá estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E aprenda!

Padre Roque e Nheçu - uma outra história


relatos da invasão das terras dos Guarani no sul do Brasil

por elaine tavares  - jornalista

Eu tinha 12 anos quando visitei pela primeira vez as ruínas de São Miguel. Morando na região das missões, a história dos guarani que aceitaram a fé católica e ergueram construções incríveis, sempre perpassara nossa vida, desde os primeiros anos. Falava-se disso na escola, em casa, nas rodas de amigos. É muito comum no Rio Grande do Sul o conhecimento da própria história.  Por isso, aquela visita era um acontecimento na nossa vida, e para ele fomos vestidos de domingo.

Também era corrente a lenda do coração de um padre, que falara, mesmo depois do mesmo ter sido assassinado pelos índios. Eram histórias espantosas que as alminhas de criança absorviam com sofreguidão. Nas tradicionais rodas de contação das lendas do lugar, aquela do coração arrepiava o cabelo. Por isso, não foi novidade para nossas curiosas cabeças a ida até o Caaró, onde o padre Roque ( esse era seu nome) havia sido morto.
Minha mãe sempre foi uma mulher de fé e contava com tristeza a história do padre Roque Gonzáles, um paraguaio de nascimento que viera para o outro lado do rio Uruguai disposto a fundar uma redução, abrindo a fronteira para a colonização branca e para a fé católica. Sua missão era catequizar os índios, considerados ferozes infiéis. Ele já havia cumprido uma missão assim, pacificando os guaicurus, da região do Chaco paraguaio, no início de 1600. Então, foi mandado para a banda oriental, nas paragens onde vivia a gente Guarani e Charrua.

Era 1626 quando padre Roque fincou a cruz no lugar que seria a redução de São Nicolau. Conta a história que ele era um homem bom, que amava os índios, com os quais convivia desde criança. Mas, nas terras do lado esquerdo do Uruguai ele encontraria a morte violenta. Era 15 de novembro de 1628, Roque acabava de oficiar uma missa na capelinha da redução que criara. Estava a amarrar o sino quando foi surpreendido por golpes de pau. Morto, teve suas vestes arrancadas e o corpo dilacerado. Foi arrastado para dentro da capela a qual os índios atearam fogo.

E é aí que vem a lenda do coração falante. Contam que no dia seguinte, quando os índios vieram dar mais uma espiada para ver se tudo havia queimado, observaram surpreendidos que o coração do padre seguia pulsando e de dentro dele saia uma voz dizendo: "matastes a quem vos amava e queria bem, porém somente meu corpo, pois minha alma está no céu. E o castigo não tarda". E até hoje o coração do padre segue no santuário, intacto. Assim, por toda a vida a história que ouvimos foi da violenta traição dos indígenas “bestas-feras”.

Mas, eis que ano passado, por essas vias tortas da vida que nos levam a bons caminhos, eu conheci Nelson Hoffmann, um adorável historiador que mora justamente na cidade de Roque Gonzáles, tendo por missão contar a vida das gentes daquelas paragens. E por suas mãos me chegou um livro, escrito por ele, que conta outro lado da antiga história. Um lado que, hoje, certamente me comove muito mais do que o martírio do padre, porque significou o martírio de muitos, de um povo inteiro. 

O livro de Nelson se chama Terra de Nheçu, e ali está exposta a chaga aberta da colonização e da evangelização feita a ferro e fogo. O padre Roque não foi o único a ser morto pelos índios da região chamada pelos originários de "Nesuretugue", o que em guarani pode ser traduzido como "terra que foi de nheçu". Ali também pereceram os padres Afonso e João, que tinham vindo junto com Roque para a jornada "civilizatória". O motivo não foi outro que a completa incapacidade de cada um deles em compreender que as gentes que ali viviam não precisavam de novos deuses, e muitos menos de deuses impostos. Já tinham suas divindades e reconheciam como suas aquelas terras que os brancos vinha ocupar.

Pois as terras aonde os padres jesuítas vieram criar reduções não eram vazias de gente. Ali vivia desde há gerações o povo naqueles dias comandado pelo cacique Nheçu. Seus domínios se estendiam desde a margem direita do rio Ijuí até a foz, no Rio Uruguai. Conta-se que sua influência se espraiava para muito além da região ocupada, e não era sem razão que se chamava Nheçu, "a Reverência". Pois o povo de Nheçu vigiava a movimentação de padres e colonos desde o alto do morro do Inhacurutum e mandava claros recados sobre o que achava daquela invasão. Nheçu era chefe e pajé, portanto representava tanto política como religiosamente todo o povo da região. E essas duas frentes estavam sendo usurpadas sem qualquer prurido. Segundo o relato do livro, Nheçu levou sete anos para permitir a entrada do padre, talvez porque já imaginasse o que viria atrás dele.  O povo branco não respeitava a vida nem os costumes dos indígenas, acreditavam inclusive que nem alma eles tinham. Mesmo os “piedosos” padres que vinham fazer o trabalho sujo de domesticação dos índios, não acreditavam que eles tivessem salvação. As reduções serviam unicamente para avançar na ocupação das terras. A conversão, feita à força, escravizava e destruía a cultura originária.

Nheçu era homem inteligente e esperto. Sabia muito bem o que acontecia quando os brancos chegavam com suas cruzes e suas reduções. Já tivera notícias de outros grupos ao longo do rio que haviam se deixado domesticar e perderam sua identidade. Ele não deixaria que isso acontecesse. Foi assim que enfrentou a invasão. Era uma guerra declarada, não eram tempos de paz. Para os indígenas, a chegada dos padres era o começo do fim. A única saída viável era o ataque às reduções. Nheçu era guerreiro, tomaria as providências.

E foi assim que se deu. Naqueles idos tempos do 1600, quando tanto os portugueses pelo leste, e os espanhóis pelo oeste, avançavam ampliando fronteiras, os povos originários travavam as batalhas tentando manter seu território e seu modo de vida. A trágica morte de Roque e dos outros padres não representou nada mais do que a dolorosa resistência dos índios guarani contra a destruição do seu mundo. A igreja torna os padres seus mártires e ergue santuários que perduram até hoje. Mas, aos índios, nada é reservado, a não ser o esquecimento.

Por isso, o livro de Nelson é um libelo à verdade, à resistência do povo guarani. É a visão dos vencidos finalmente vindo à tona, mostrando que aquela violência não foi o ato gratuito de uma besta-fera, mas o desesperado grito de luta contra a invasão e a opressão. E essa recuperação histórica pode agora mostrar que naquela campanha missioneira nem Roque era um herói, nem os índios selvagens. O que se deu ali foi uma longa batalha entre dois mundos distintos, sendo que um deles, que detinha o poder das armas, não estava disposto a conceder. Assim, é preciso que se reconheça aos indígenas o seu direito de lutar contra a invasão.

O trabalho de Nelson Hoffman responde agora, tantos anos depois, a pergunta insistente que martelava o meu cérebro de menina diante do coração do padre Roque. “Se ele vinha trazer o bem, por que o mataram?” Impor uma fé e um modo de vida não é coisa que possa dar certo, nem nos tempos idos, nem nos dias atuais. Por isso, hoje, andando pelos caminhos das missões, eu posso, muito além de incensar a inegável beleza criada pelos jesuítas, farejar a valentia do povo ancestral, que com suas flechas e seus corpos nus enfrentaram as armas e a arrogância de Castela e de Portugal.

Nelson mantém, na cidade de Roque Gonzales, um jornal, o Nheçuano, cotidiano espaço de resistência, onde as questões indígenas são debatidas assim como as lutas sociais. Também participa da Associação Cultural  Nheçuanos.