19/12/2005 - Quem já viu o povo o povo boliviano em rebelião sabe o que significa a vitória de Evo Morales, neste dia 18 de dezembro, nas urnas de todo o país. O rosto aymara, quadrado e de nariz majestoso, é um pouco a cara de cada um daqueles homens e mulheres que ao longo de mais de 180 anos de república vêm ensaiando esse momento de assumir, de verdade, o mando do país. Pela primeira vez, em toda a história da Bolívia, um muito digno representante da gente autóctone se faz presidente da nação com mais de 50% dos votos. Portanto, sem passar pela votação do congresso, apenas pela mão das gentes. Por isso, pelas ruas, o que mais se vê é uma alegria sem igual e o balançar da sagrada “wiphala”, a bandeira multicolorida que representa a nação aymara-quéchua. “Uma outra América está em marcha”, dizem os mais entusiasmados, enquanto outros recomendam: “Ojo!”, que no linguajar latino-americano significa olho muito vivo. Enquanto isso, nos EUA, alguns tremem.
Quem é o novo presidente
Evo Morales nasceu em 29 de outubro de 1959, na pequena comunidade de Isallavi, distrito de Oruro, a mítica cidade mineira. Mas, sua família era de camponeses. Durante toda a infância foi pastor de lhamas e amargou a vida dura de quem habita as áreas rurais. Os pais Dionísio e Maria tiveram sete filhos, dos quais apenas três sobreviveram. Destes tempos no ayllu (comunidade) Evo lembra das vezes em que a fome apertava e ele partia, com o pai, para buscar, bem longe, a farinha de milho que seria repartida entre todos no ayllu. Nestes longos trajetos entre Oruro e Cochabamba, o pequeno aymara recolhia as cascas de laranja que os viajantes jogavam pelas janelas dos barcos, e que ficavam pela beira da estrada. Era o que lhe matava a fome. Naqueles dias sonhava em ter uma vida melhor para ele e os seus. Mas, no altiplano, tudo parecia muito distante.
Por outro lado o garotinho já fazia das suas na escola. Era um diferente. Convocado pela professora a desenhar um burro ele o desenhou e pintou de vermelho, amarelo e verde. Foi motivo de riso por meses, mas sustentou sua cria. Com 13 anos criou um clube de futebol, o Fraternidad, e junto com o pai, tosquiava as lhamas para garantir dinheiro para a compra de bolas e uniformes. Com 16, já era o técnico da seleção do distrito.
A mudança para Chapare, na região de Cochabamba, foi um passo importante para o jovem que já havia servido ao exército. Queria estudar, tinha ganas de fazer sempre mais. Mas, foi uma notícia cruel que dirigiu sua vida para o rumo do sindicato. Era o governo de García Meza e, em Chapare, se soube da história de um sindicalista que tinha sido queimado vivo. Aquilo serviu para que a indignação se transformasse em ação e com outros jovens criou grupos de apoio ao sindicato. Não demorou muito e lá estava ele, diretor, fazendo a luta. Em pouco tempo já era uma liderança nacional, sempre enfrentando o debate sobre o direito de os autóctones cultivarem a coca, planta ancestral que praticamente sustenta as gentes do altiplano andino. “Quem inventou a cocaína não foram os aymaras, nem os quéchuas. O branco fez isso e agora quer destruir nossas plantações. Isso nunca!”
A política sempre foi seu espaço e esta não é a primeira vez que concorre à presidência. Esteve no páreo quando o vencedor foi Sanchez de Lozada, o “gringo” que foi defenestrado pelo povo em 2004. Desta vez, mesmo com a vergonhosa campanha anti-Evo feita pelos meios de comunicação de massa, o povo boliviano decidiu olhar-se no espelho e perceber que sim: podia! E foi por isso que durante todo o domingo, aymaras, quéchuas e mesmo os brancos enfrentaram as longas caminhadas pelos vazios bolivianos na busca do sonho de, finalmente, governar o país a partir de uma “mirada” diferente. Com quase 70% de população autóctone, a Bolívia quer ver ascender um novo jeito de governar, sob a marca de “Awyayala”, a grande pátria originária. Evo Morales é essa promessa.
Os desafios a enfrentar
República desde 1825, a Bolívia não tem sido um país fácil de governar. Invadida e acossada pelo homem branco desde a conquista, mesmo a liberdade foi dura. As guerras de libertação de Espanha ceifaram muitas vidas e foram conduzidas pelos chamados “criolos”, brancos nascidos no continente. Quando deixou de ser colônia passou para a mão dos latifundiários, caudilhos e gente do dinheiro. Nunca esteve sob o controle das gentes trabalhadoras. Apenas num breve período, no primeiro governo de Paz Estessoro, essa possibilidade se abriu e algumas conquistas foram alcançadas. Mas, o corrente são as ditaduras, os governos autoritários e os oportunistas.
É certo que cada um deles foi enfrentado com valentia pelos bolivianos. Desde 1825 o país já passou por mais de 200 golpes de estado, rebeliões e conflitos. E, em cada uma dessas situações o que mais se viu foi a força das gentes, enfrentando fuzis, balas, fechando estradas, balançando as bandeiras e chutando para fora do governo aqueles que não cumpriram as promessas. Evo Morales é cria desse povo. Já enfrentou tudo. O preconceito, a discriminação, a prisão. Agora é presidente e tem nas mãos um grande desafio. A América Latina se levanta, quer re-colocar em questão o que Hugo Chàvez, da Venezuela, chama de “outra integração”, porque de uma cor diferente, fora da área de influência das cores do Tio Sam. Vai ser a hora de provar se o povo boliviano está mesmo representado nele.
“Votamos a vida toda, mas nunca elegemos. Agora sim, elegemos!” Essa é a frase que ribomba na cabeça das gentes. E isso é uma tremenda responsabilidade. No Brasil, o povo brasileiro passou por isso. Elegeu Lula e tem sofrido com suas constantes guinadas neo-liberais. Da mesma forma, há receios na Bolívia. Quem pode saber o que vai acontecer? Se os Estados Unidos não vai interferir, como sempre faz, acusando de alguma fraude ou usando seu argumento mais manjado: a falta de democracia. É, porque quando um povo, pobre, marginalizado e desprezado se levanta, sempre há quem ache que é preciso recoloca-lo em seu lugar de subserviência. Esta vai ser sempre uma ameaça.
Mas, por enquanto, na Bolívia, tudo é festa. A cara quadrada, de nariz majestoso, está em todos os jornais, nas ruas, nos bares. As gentes se olham no grande espelho e vêem-se refletidas, filhas de “awyayala”, iguais. É, sem dúvida, um novo tempo. O gás, a integração latino-americana, a nacionalização das empresas mineradoras, a assembléia popular constituinte, os problemas da privatização da água, as questões dos camponeses, tudo isso e muito mais, ficam para mais tarde. Agora é hora do ágape, da celebração da profecia de Tupac Katari, o aymara que foi esquartejado por lutar pela liberdade: “Hoje apenas matam a mim. Mas, amanhã, voltarei. E serei milhões”. Assim é!
Pachacamak (o ser supremo) vibra, e Evo Morales promete: “vou mandar na Bolívia obedecendo ao povo”. Uma nova América pode, sim, estar em marcha.
Quem é o novo presidente
Evo Morales nasceu em 29 de outubro de 1959, na pequena comunidade de Isallavi, distrito de Oruro, a mítica cidade mineira. Mas, sua família era de camponeses. Durante toda a infância foi pastor de lhamas e amargou a vida dura de quem habita as áreas rurais. Os pais Dionísio e Maria tiveram sete filhos, dos quais apenas três sobreviveram. Destes tempos no ayllu (comunidade) Evo lembra das vezes em que a fome apertava e ele partia, com o pai, para buscar, bem longe, a farinha de milho que seria repartida entre todos no ayllu. Nestes longos trajetos entre Oruro e Cochabamba, o pequeno aymara recolhia as cascas de laranja que os viajantes jogavam pelas janelas dos barcos, e que ficavam pela beira da estrada. Era o que lhe matava a fome. Naqueles dias sonhava em ter uma vida melhor para ele e os seus. Mas, no altiplano, tudo parecia muito distante.
Por outro lado o garotinho já fazia das suas na escola. Era um diferente. Convocado pela professora a desenhar um burro ele o desenhou e pintou de vermelho, amarelo e verde. Foi motivo de riso por meses, mas sustentou sua cria. Com 13 anos criou um clube de futebol, o Fraternidad, e junto com o pai, tosquiava as lhamas para garantir dinheiro para a compra de bolas e uniformes. Com 16, já era o técnico da seleção do distrito.
A mudança para Chapare, na região de Cochabamba, foi um passo importante para o jovem que já havia servido ao exército. Queria estudar, tinha ganas de fazer sempre mais. Mas, foi uma notícia cruel que dirigiu sua vida para o rumo do sindicato. Era o governo de García Meza e, em Chapare, se soube da história de um sindicalista que tinha sido queimado vivo. Aquilo serviu para que a indignação se transformasse em ação e com outros jovens criou grupos de apoio ao sindicato. Não demorou muito e lá estava ele, diretor, fazendo a luta. Em pouco tempo já era uma liderança nacional, sempre enfrentando o debate sobre o direito de os autóctones cultivarem a coca, planta ancestral que praticamente sustenta as gentes do altiplano andino. “Quem inventou a cocaína não foram os aymaras, nem os quéchuas. O branco fez isso e agora quer destruir nossas plantações. Isso nunca!”
A política sempre foi seu espaço e esta não é a primeira vez que concorre à presidência. Esteve no páreo quando o vencedor foi Sanchez de Lozada, o “gringo” que foi defenestrado pelo povo em 2004. Desta vez, mesmo com a vergonhosa campanha anti-Evo feita pelos meios de comunicação de massa, o povo boliviano decidiu olhar-se no espelho e perceber que sim: podia! E foi por isso que durante todo o domingo, aymaras, quéchuas e mesmo os brancos enfrentaram as longas caminhadas pelos vazios bolivianos na busca do sonho de, finalmente, governar o país a partir de uma “mirada” diferente. Com quase 70% de população autóctone, a Bolívia quer ver ascender um novo jeito de governar, sob a marca de “Awyayala”, a grande pátria originária. Evo Morales é essa promessa.
Os desafios a enfrentar
República desde 1825, a Bolívia não tem sido um país fácil de governar. Invadida e acossada pelo homem branco desde a conquista, mesmo a liberdade foi dura. As guerras de libertação de Espanha ceifaram muitas vidas e foram conduzidas pelos chamados “criolos”, brancos nascidos no continente. Quando deixou de ser colônia passou para a mão dos latifundiários, caudilhos e gente do dinheiro. Nunca esteve sob o controle das gentes trabalhadoras. Apenas num breve período, no primeiro governo de Paz Estessoro, essa possibilidade se abriu e algumas conquistas foram alcançadas. Mas, o corrente são as ditaduras, os governos autoritários e os oportunistas.
É certo que cada um deles foi enfrentado com valentia pelos bolivianos. Desde 1825 o país já passou por mais de 200 golpes de estado, rebeliões e conflitos. E, em cada uma dessas situações o que mais se viu foi a força das gentes, enfrentando fuzis, balas, fechando estradas, balançando as bandeiras e chutando para fora do governo aqueles que não cumpriram as promessas. Evo Morales é cria desse povo. Já enfrentou tudo. O preconceito, a discriminação, a prisão. Agora é presidente e tem nas mãos um grande desafio. A América Latina se levanta, quer re-colocar em questão o que Hugo Chàvez, da Venezuela, chama de “outra integração”, porque de uma cor diferente, fora da área de influência das cores do Tio Sam. Vai ser a hora de provar se o povo boliviano está mesmo representado nele.
“Votamos a vida toda, mas nunca elegemos. Agora sim, elegemos!” Essa é a frase que ribomba na cabeça das gentes. E isso é uma tremenda responsabilidade. No Brasil, o povo brasileiro passou por isso. Elegeu Lula e tem sofrido com suas constantes guinadas neo-liberais. Da mesma forma, há receios na Bolívia. Quem pode saber o que vai acontecer? Se os Estados Unidos não vai interferir, como sempre faz, acusando de alguma fraude ou usando seu argumento mais manjado: a falta de democracia. É, porque quando um povo, pobre, marginalizado e desprezado se levanta, sempre há quem ache que é preciso recoloca-lo em seu lugar de subserviência. Esta vai ser sempre uma ameaça.
Mas, por enquanto, na Bolívia, tudo é festa. A cara quadrada, de nariz majestoso, está em todos os jornais, nas ruas, nos bares. As gentes se olham no grande espelho e vêem-se refletidas, filhas de “awyayala”, iguais. É, sem dúvida, um novo tempo. O gás, a integração latino-americana, a nacionalização das empresas mineradoras, a assembléia popular constituinte, os problemas da privatização da água, as questões dos camponeses, tudo isso e muito mais, ficam para mais tarde. Agora é hora do ágape, da celebração da profecia de Tupac Katari, o aymara que foi esquartejado por lutar pela liberdade: “Hoje apenas matam a mim. Mas, amanhã, voltarei. E serei milhões”. Assim é!
Pachacamak (o ser supremo) vibra, e Evo Morales promete: “vou mandar na Bolívia obedecendo ao povo”. Uma nova América pode, sim, estar em marcha.
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