Resistem as gentes na Aldeia Maracanã





Fotos: Ricardo Casarini

Contra o “negócio” Copa do Mundo, a beleza e a força do mundo indígena se levantam

1556. Rio de Janeiro. Território Tupinambá

No meio da mata os Tupinambás espiam a baia. Desde há muito tempo (1502) que por ali havia chegado uma gente estranha. Traziam cruzes e armas que cuspiam fogo. Por anos foram empurrando os nativos para longe da praia, expulsando das terras que ocupavam em paz e destruindo seu modo de vida. Muitos tinham sido mortos, outros escravizados e uns poucos se embrenhavam para dentro da floresta, ainda livres. As batalhas eram frequentes, mas desiguais. Em 1554, um jovem índio chamado Aimbiré, filho do cacique Kairuçu, depois de ver o pai capturado e morto por conta dos maus tratos na fazenda de Brás Cubas, em São Vicente, consegue fugir do cativeiro e começa a reunir-se com chefes de grupos indígenas que ainda andavam livres pela região. É ele quem vai costurar uma aliança histórica de resistência. Naqueles dias andavam pela baia também os franceses, loucos para abocanhar riquezas. Os Tupinambás – que nos tempos da invasão dominavam todo o litoral - por algum motivo, acreditaram que aqueles poderiam ser amigos e se aliaram a eles para expulsar os portugueses. Lograram um pacto com os Goitacazes e os Guaianases, e essa parceria se configurou na famosa Confederação dos Tamoios, liderada por Aimbiré. Os indígenas pelearam por mais de 10 anos contra os portugueses. Traziam na pele a marca da opressão e queriam suas terras de volta.

Em 1565, Estácio de Sá desembarca perto do que hoje é o Pão de Açúcar e começa dali a resistência portuguesa contra os franceses e os indígenas. É quando funda a vila de São Sebastião do Rio de Janeiro. Com a ajuda do padre Anchieta, os portugueses vão se misturando a outras etnias indígenas, conquistando amizades e enfraquecendo a Confederação. Naqueles dias a coroa não atinava perder o comércio do pau-brasil, abundante na região. Por dois anos deram batalha aos indígenas. Esses eram chefiados pelo valente cacique Aimbiré, que conduzia os guerreiros pelas canoas através da baia da Guanabara em duros confrontos contra os invasores. Ainda assim, Estácio de Sá seguia distribuindo terra aos amigos portugueses, visando fortalecer suas posições. Em 1567, os portugueses conseguem abafar o movimento indígena e expulsam os franceses da região. A Confederação dos Tamoios é derrotada, os povos originários do lugar são dizimados, as lideranças caem nas batalhas, e poucas famílias conseguem escapar pelo mato, garantindo assim a continuidade do povo indígena na região.

2006. Rio de Janeiro. Ocupação Guajajara

No meio dos prédios os Guajajaras espiam o grande estádio do Maracanã, templo de um esporte que chegou ao Brasil pelas mãos dos ingleses, num tempo em que a Inglaterra era dona do mundo. Remanescentes dos velhos guerreiros da Confederação dos Tamoios, os indígenas se embrenham na cidade maravilhosa para recuperar o que acreditam ser seu: uma pequena fatia de território. O mesmo espaço que foi palco da disputa sangrenta entre portugueses e tupinambás nos primeiros anos de invasão. O lugar em questão é um velho prédio localizado ao lado do estádio, que de 1953 até 1977 abrigara o Museu do Índio, criado por Darcy Ribeiro para ser justamente um espaço onde o homem branco pudesse compreender o modo de vida dos povos originários.

O território onde está o prédio tem larga vinculação com os indígenas. Primeiro, era o seu mundo original. Depois, com a vitória portuguesa foi passando por várias famílias até que em 1865, o então proprietário, Duque de Saxe, doou a grande mansão que construíra para que o governo federal a transformasse em Centro de Pesquisa sobre a cultura indígena. Nada aconteceu. A casa acabou abrigando a Escola Nacional de Agricultura e só décadas depois sediou o antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Quando o SPI foi transferido para Brasília em 1964, o prédio passou para a mão dos militares. Foi só em 19 de abril de 1953 que o casarão retornou para a vida indígena, quando Darcy Ribeiro instituiu o Dia do Índio e criou ali o museu.

Mas, o espaço não ficaria muito tempo dedicado ao abrigo da história indígena. Em 1977 o museu é transferido para o bairro do Botafogo e o prédio passou para o controle da Companhia Nacional de Abastecimento, que praticamente o abandonou. Ao longo dos anos, a velha casa foi ruindo e nunca sequer foi tombada pelo Patrimônio Histórico.

Só que para os indígenas aquele lugar é espaço sagrado, templo de resistência e foi assim que em 2006 cerca de 20 pessoas – indígenas de várias etnias - decidiram ocupar o prédio, dispostos a fazer dali um ambiente de acolhimento para todos os irmãos que chegam à cidade maravilhosa, além de guardar a memória ancestral das gentes que viveram naquele território desde os tempos imemoriais. A casa foi tomada e começou a batalha pelo tombamento e recuperação. Desde então as comunidades originárias vem travando grande batalha institucional para manter o prédio, criando um polo de produção de cultura e de conhecimento sobre os povos originários. Mas, a exemplo dos tempos da invasão, novos Estácios de Sá armam suas esquadras e dão combate aos indígenas. Ao que parece, nada muda nas terras de Pindorama.

2012. Rio de janeiro. Copa do Mundo

Pois em julho desse ano, completamente surdo aos desejos dos povos indígenas e dos movimentos sociais para que fosse feito o tombamento do lugar, o governo federal vendeu a área ao governo do Rio de Janeiro. A proposta do governador Sérgio Cabral, singela, é derrubar o prédio para que sirva de espaço de mobilidade para as pessoas que virão assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014. Mais uma vez, a cultura indígena sendo solapada em nome de um deus estranho: nesse caso, o dinheiro.

Hoje seguem vivendo no prédio perto de 20 pessoas, representando etnias de diversas regiões do país: Guajajara, Pankararu, Xavante, Guarani, Apurinã, Fulni-ô, Pataxó e Potiguara, entre outras. Várias casas foram erguidas no lado de fora, uma vez que o prédio principal está em ruinas, apesar de servir para algumas atividades. A proposta dos ocupantes é recuperar o prédio e transforma-lo na primeira Universidade Indígena do país. Atualmente já são ministradas aulas de língua Tupi Guarani, inclusive para professores universitários e acontecem manifestações culturais, rituais, pinturas de corpo, feitura de comidas típicas das etnias na cozinha coletiva, ensinadas medicinas nativas e contadas histórias das tradições indígenas. Segundo as lideranças vivem mais de 30 mil índios no espaço urbano do Rio de Janeiro e o casarão deverá ser também um ponto de referência para a sobrevivência da cultura de todos eles.

Nesses dias, quando a demolição se aproxima, muito mais gente está se unindo aos moradores originários, tentando fazer pressão para que o governo estadual reverta a situação. Já foram feitas audiências públicas na assembleia estadual, caminhadas, protestos, ações judiciais. Tudo o que dá para fazer dentro da ordem burguesa. Mas, nos governos, todos estão surdos. Para se ter uma ideia do que pensam basta espiar a fala do Superintendente Federal de Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, em entrevista aos jornais: “A memória dos índios será preservada, talvez com uma loja de artesanato para eles venderem seus materiais”. Para eles, índio é folclore. Já Sérgio Cabral insiste: “vamos derrubar”. Mas, na aldeia Maracanã, o povo segue em resistência.

E tu, cara pálida?

A verdade pode soar incômoda, mas, índio, no Brasil, é estorvo. Por conta disso, eles são assassinados, estuprados, dominados, chutados, queimados, escondidos, degradados. Só que nem sempre foi assim. Antes da invasão dos portugueses os grupos étnicos, mais de 200, iam construindo suas vidas, dentro dos limites de suas culturas. Vivendo em terras férteis e abundantes não chegaram a constituir uma civilização como os astecas, incas e maias, premidos pelas dificuldades geográficas. Eram caçadores, coletores, e sentiam-se livres na imensidão das terras tropicais. A chegada dos estrangeiros colocou o mundo de cabeça para baixo, todo um modo de vida ruiu. Com os portugueses vieram a cruz e o arcabuz, exigindo a fé num deus estranho e impondo a escravidão. Estarrecidos diante da violência dos homens de além-mar, os habitantes originários dessas terras foram se embrenhando no interior. Os que não conseguiram foram exterminados. E assim foi se fazendo esse imenso Brasil. O índio era um animal sem alma que não servia sequer para ser escravo. Por isso, o extermínio, o genocídio.

Com o passar do tempo, as etnias que se embrenharam pelo interior também foram sendo encontradas. Com a chegada dos imigrantes, as terras que eram espaços de liberdade, começaram a ser aradas e escrituradas, passavam para outras mãos, viravam mercadoria, coisa que se compra. Na solidão das noites, os grupos indígenas que tinham sobrevivido ao massacre dos primeiros tempos também foram sendo destruídos, um a um. Eram chamados de bugres, selvagens, animais. Precisavam ser “civilizados” para que aceitassem pacificamente o roubo de suas terras e vidas. Assim se criaram os “bugreiros”, os bandeirantes, uma gente que fez fortuna caçando e matando índio e que até hoje são apontadas como “heróis nacionais”. De novo, os habitantes originais da grande Pindorama eram um entrave para o progresso que representavam os imigrantes.

No início do século XX uma nova versão de contato começou a se fazer. Já não era mais o tempo da morte, do extermínio, mas da inclusão. Os indígenas começaram a ser procurados para que pudessem sair do seu estado “selvagem” fazendo parte da “civilização”. Com o lendário Marechal Rondon acabava-se a caça e começava um processo de integração. Foi ele quem criou o Serviço de Proteção ao Índio, em 1910, com sede no Rio de Janeiro, então capital da República. O objetivo era dar amparo e ajudar no processo de integração. Mas, apesar de todos os esforços e da boa vontade de muita gente do calibre de um Rondon, a integração do índio à sociedade que se criou a partir do genocídio nunca se deu de verdade. Fora do seu lugar sagrado, os povos originários seguiram sendo vistos como um estorvo. Os que se integraram na vida fora das matas, foram perdendo suas referências culturais, e ainda assim seguiram sendo discriminados. E os que aceitaram viver em aldeias, amargam até hoje a falta de direitos e de terra.

Apesar da história triste de morte, destruição e genocídio, os povos indígenas nunca se entregaram sem luta. Desde os primeiros dias da invasão, quando perceberam que ali estava a opressão, as comunidades resistiram. Resistem ainda hoje por todo o país, na luta pela demarcação das terras, contra a invasão de seus territórios, contra os megaprojetos que destroem a vida, pela garantia de seus direitos. E não é diferente o que acontece hoje no Rio de Janeiro. Tão pouco o que querem: um prédio, uma universidade, um espaço para que sua gente possa descansar a cabeça e cultivar sua cultura. Ainda assim, a sanha por lucro, dinheiro, negócios, prevalece. A Copa do Mundo, que pretende atrair turistas de todo o planeta, trará com ela mais um massacre.

Que fazer diante disso? Da impotência frente à fria lógica do capital? Talvez seja hora de evocar Aimbiré, a alma sagrada da Confederação tamoia, o desejo secular de liberdade das gentes indígenas para viver sua cultura, seus deuses, seu modo de vida. E, com essa força, iniciar uma rebelião que acerte o ponto mais sensível dessa gente que quer derrubar a aldeia Maracanã: o bolso. As formas? Haveremos de encontrar...

Carta da comunidade Xavante de Marãiwatsédé à sociedade brasileira



Na ECO-92, começamos a lutar pela nossa terra de Marãiwatsédé.

Neste território, os ancestrais, nossos bisavós viviam em cima da terra. Este território é de origem do povo de Marãiwatsédé. Nesta terra amada foi criado o povo de Marãiwatsédé.

Agora, a desintrusão já começou. Os anciões esperaram muito tempo para tirar os não-índios da terra. Sofreram muito. A vida inteira sofrendo, esperando tirar os fazendeiros grandes.

A lei federal, a Constituição, as autoridades estão do nosso lado. As autoridades da Força Nacional, Exército, Polícia Federal estão do nosso lado porque a presidente Dilma sabe que a terra é dos Xavante de Marãiwatsédé. Agradecemos as autoridades e todas as entidades que nos apoiam nessa luta da verdade contra a mentira. A desintrusão é ótima.

Será que a terra é dos brancos? Será que os pais, os avós, os bisavós dos fazendeiros nasceram aqui? A gente sabe, a comunidade de Marãiwatsédé sabe. Não nasceram! Quem sempre ocupou a terra foi o índio. O Xavante de Marãiwatsédé. Hoje, a comunidade espera tranquila a desintrusão.

Quem ocupava a terra eram nossos pais, nossos avós, nossos bisavós que nasceram aqui, cresceram aqui, fizeram festa para adolescente. Lutaram muito, faziam ritual dentro do território de Marãiwatsédé. Nem fazendeiro, nem posseiro viviam aqui antes de 1960. Era só índio, os anciãos lembram, só tinham duas casas em São Félix do Araguaia.

Quando fomos retirados para a TI [Terra Indígena] São Marcos já que criaram os municípios e o nosso território foi destruído.

Quem destruiu foi o índio ou foi o branco? A gente sabe mesmo. Foi o branco que destruiu a floresta, essa não é a nossa vida. Nossa vida é preservar a terra, a natureza, os rios, os lagos. É assim que a gente vive. Nosso povo respeita nossa mãe e nossa mãe é a natureza. Nós esperamos tranquilos a nossa vitória. Dormimos tranquilos, sonhamos bonito com a vitória da nossa terra.

Antes da retirada de nossa terra, mataram muitos Xavante. Os fazendeiros daquele tempo eram muito bandidos. Mataram com tiro. Morreram Tseretemé, Tsercnhitomo, Tsitomowê, Pa'rada, Tseredzaró. Todos mortos com tiro. Não vamos trair os espíritos deles. Eles só foram tombados em cima desta terra. Será que os fazendeiros vão pagar indenização?

Quando o povo de Marãiwatsédé morava aqui, quem apareceu primeiro foi Ariosto Riva. Ele fez fotos com o nosso povo. Ele enganou os Xavante, destruiu nossa terra. Não pediu para o povo Xavante se podia destruir a floresta. Foi ele que invadiu nosso território. Os mais velhos lembram. O piloto dele era o Nélson. A comunidade Xavante de Marãiwatsédé quer a terra de volta. Ela foi reduzida.

A diferença do Xavante de Marãiwatsédé com os outros Xavante é porque os Xavante de Marãiwatsédé estão sempre preservando a floresta. Não é só o Cerrado. A floresta (Amazônica) é principal para nossos bisavós que viviam aqui.

É a mata misteriosa que só os Xavante de Marãiwatsédé conhecem seus segredos. Por isso, os antepassados sempre preservaram a floresta, porque ela é da nossa cultura.

Essa terra é nossa origem. Os Xingu também protegiam esta terra, os antepassados dos Kalapalo eram amigos dos antepassados dos Xavante de Marãiwatsédé.

Os animais não podem sofrer mais com tanta destruição da natureza. Quando a terra for devolvida para nosso povo, a floresta vai viver novamente. Vão voltar animais e plantas. Nossa mãe vai ficar muito forte e muito bonita, como sempre foi. É assim que tem que ser. 

Damião Paridzane

Cacique da aldeia Marãiwatséd

08/12/2012

Indígenas ainda morrem por doenças facilmente tratáveis



por elaine tavares

Enquanto por todo o país se discute a trágica situação dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, e a situação de violência a que estão submetidos pelos fazendeiros e pelo Estado brasileiro, em outros espaços do país, seguem as lutas dos povos originários por condições mínimas de vida.

No sul do Amazonas, por exemplo, famílias das etnias Tenharin, Parintintin, Jiahui e Apurinã ocuparam a Casa de Saúde do Índio (Casai) e o Polo Base de Humaitá, localizados no município de Humaitá, a uma distância de 600 quilômetros de Manaus. Eles reivindicam melhorias na estrutura de atendimento à saúde das gentes que vivem na região. Segundo as lideranças o serviço é ruim e  não garante o deslocamento dos indígenas desde as aldeias. Há muita demora no encaminhamento para consultas, para realização de exames e não há remédios disponíveis. É sempre bom lembrar que muitas das doenças que hoje acometem os índios não existiam e foi só a partir do contato com as populações brancas que elas apareceram.  Daí a necessidade de tratamento que foge do tradicional. Mas, ainda assim, os governos, que já não têm primado por um bom serviço nessa área nem para as populações brancas, seguem marginalizando os indígenas.

O jornal A Crítica divulgou também que indígenas do estado do Amazonas vêm denunciando sistematicamente a falta de ação do governo no que diz respeito às demandas dos povos originários. Segundo dados dos próprios indígenas reunidos no Centro Amazônico de Formação Indígena, no ano passado o governo do Amazonas deixou de utilizar 48,3% das verbas disponíveis para a questão indígena - em torno de 232 milhões de reais, o que poderia ter contribuído para diminuir os problemas que as famílias enfrentam no que diz respeito a terra, educação e saúde.

No último mês de junho o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou uma pesquisa que mostra o quanto a situação dos povos originários se agravou depois da transição da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), estruturas federais que cuidam - ou deveriam cuidar - da saúde indígena. Segundo relatório da entidade são registradas mortes por doenças que poderiam ser facilmente tratadas. Conforme o Cimi, no ano de 2011 morreram 126 indígenas com idades entre 0 e 5 anos, simplesmente por falta de assistência médica. O Mato Grosso é o estado que lidera essa triste estatística, com a morte de 56 crianças da etnia Xavante, diagnosticadas com desnutrição, morrendo por diarreia ou pneumonia. O Amazonas vem em segundo lugar. Em 2012 já foram registradas 92 mortes. Olhando assim os números, não parecem muito expressivos em relação à população brasileira. Mas, para uma mãe que perde um filho, um único digito significa uma dor sem fim. Ainda mais quando essa morte é parte do descaso.

Nos demais estados brasileiros as reclamações com relação à saúde também são muitas. Falta aos profissionais da saúde a compreensão da realidade e da cosmovisão indígena, o que também contribui para a não eficácia de tratamentos. Para os indígenas, seria de fundamental importância que os profissionais - médico e enfermeiros - que são designados para o atendimento à saúde dos povos originários, pudessem ter alguma formação no campo dos saberes tradicionais, buscando aprender com os indígenas técnicas e tratamentos compatíveis com a maneira de ser das comunidades. Um diálogo generoso entre os cuidadores e os indígenas poderia reduzir em muito as mortes e o sofrimento.


Salvar os Guarani-Kaiowá?



Por elaine tavares - jornalista

Aprendi com meu irmão, há muitos anos, que não há nada pior no humano do que a hipócrita (por vezes não intencional) musculação de consciência. E isso é coisa que acontece muito no meio daqueles que estão no topo ou no meio da pirâmide social. Olham para o sofrimento dos pobres - a comunidade das vítimas do sistema - como se fossem coitadinhos, e sentem pena. Podem até chorar diante de uma foto ou de uma dada situação. E desde sua pena, buscam ajudar, musculando a consciência. Um quilo de arroz numa campanha para vítimas da enchente, um agasalho para as entidades filantrópicas, uma doação ao “criança esperança”. Depois, consciência musculada, voltam a vida normal, certas de que fizeram tudo que podiam fazer. Arrisco dizer: isso não é suficiente. Apazigua a consciência, mas não muda as coisas.

Detectei essa reação nesses dias em que se resolveu prestar atenção ao sofrimento indígena. Um grupo de índios Guarani, do Mato Grosso do Sul, que desde há 500 anos vêm observando a estranha mania dos cristãos – seus dominadores - em se purificar no sacrifício, resolveu expor a chaga aberta do sofrimento de sua gente numa concreta vivência sacrificial. Ou lhes deixam viver nas suas terras, ou se matam, em grupo. Ato extremo, sofrimento extremo, decisão extrema. Então, como que atiçados pelo sempre excitante momento do sacrifício, as gentes brasileiras decidiram começar a falar do “absurdo” que é essa desesperada decisão. Assim, terminada a novela das oito, que segundo algumas vozes “parou o país”, agora as redes sociais e todos os que têm espaço de voz nos meios começaram a discutir a questão dos Guarani que estão prometendo se matar. Sinto aí certo cheiro de musculação de consciência.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul não é o primeiro nem será o último. Desde o momento em que os povos originários perceberam que a cruz e a espada que chegavam com os homens do além-mar eram armas de opressão, a luta pela manutenção do direito de viverem na sua terra, com seus deuses e do seu jeito, começou. Ao longo dos anos, com a colonização europeia, milhões de pessoas foram assassinadas, das formas mais cruéis, simplesmente porque atrapalhavam o caminho para o ouro e as riquezas do novo mundo. Essa gente desesperada que hoje grita em agonia por um naco de terra onde descansar a cabeça, é a mesma gente que antes da invasão aqui vivia em fartura, nas grandes cidades como Tenochtitlán, Cuzco, Tiuahanaco, maiores e mais populosas que Madrid, Lisboa ou Florença no mesmo tempo. Eram homens e mulheres que conheciam a astronomia, a matemática, a hidráulica, a engenharia. Eram os que experienciavam uma forma de vida comunitária, na qual ninguém passava fome, no mesmo tempo em que na Europa medieval as pessoas padeciam de fome crônica. E foram eles os considerados sem alma, os passíveis de todo o tipo de selvageria e escravidão, porque não falavam a língua espanhola ou portuguesa e professavam outra fé, na variedade dos deuses.

O grito dos Guarani de Mato Grosso do Sul é o mesmo grito do cacique da etnia Taíno, Hatuey, que, em 1511, poucos anos depois da invasão, ao descobrir que o deus verdadeiros daqueles homens era o ouro, viajou desde o Haiti até a ilha de Cuba, com 400 guerreiros, para avisar que o que chegava pelo mar era a destruição. Não foi escutado. Mesmo assim se dispôs a lutar contra os espanhóis e só parou quando foi capturado e morto na fogueira. Foi vencido pela força dos arcabuzes, tendo seu povo sido dizimado em castigo. Esse grito segue aí. Também continuam ressoando os gritos de Cuauhtemotzin, no México, quando em 1520 igualmente iniciou a resistência contra os espanhóis que haviam assassinado milhares na cidadela de Montezuma, e os de Ruminahuia, que na região de Quito também se levantou em rebelião contra os que queriam destruir seu mundo e o dos seus. E o que dizer dos Tamoios no Brasil de 1562, que chegaram a constituir uma confederação para enfrentar a vilania portuguesa?

Pois essa gente tem gritado, lutado, batalhado, peleado desde os primeiros momentos da invasão. E, desde sempre esses gritos foram abafados, porque os indígenas não eram vistos como seres capazes de gerir suas vidas. Eram homens e mulheres dominados que tinham de se render calados e servis. Só que nunca foi assim. A batalha pelo continente segue aí, desde então.

Mas, como sempre acontece, os vencedores impõem suas razões. Os povos indígenas foram dizimados em nome do progresso e do bem estar dos invasores. Os que valentemente sobraram acabaram confinados em reservas, ora como bichos raros, ora como coitadinhos e incapazes. Integrar o índio à sociedade passou a ser o mantra dos caridosos vencedores. E os que acreditaram no engodo já viram o que sucedeu. Incorporados a uma sociedade racista, patriarcal, capitalista, seguem sendo vistos como seres inferiores, mesmo os que chegaram aos mais altos postos da estrutura social. Índios, os seres sem alma.

Há poucos anos o país acompanhou a polêmica da reserva Raposa Terra do Sol, uma imensidão de terra indígena que os originários lograram garantir para si. Quem não se lembra dos ferozes argumentos da distinta sociedade pensante? “Para quê tanta terra para índios? O que eles vão fazer com isso? Vão destruir tudo e vender as madeiras.” Esse era o diapasão dos caridosos brasileiros. E as batalhas pela região do Xingu que estão aí, se arrastando há anos, sem que ninguém se apiede das almas das gentes que vão perder seus rios, seus deuses, seu território em nome de uma barragem para gerar energia aos estrangeiros. E os mesmos piedosos argumentam que “essa gente” (os índios) é o atraso, a decadência, o anacrônico, incapaz de ver a importância do progresso que virá com a devastação da Amazônia.

É que esses índios são os que, por estarem em grandes grupos e articulados com movimentos sociais, lutam. Travam a boa batalha contra a destruição do seu modo de vida. E como valentes guerreiros precisam enfrentar as armas inimigas que já não são só arcabuzes e cavalos. Vêm acompanhadas da mídia que fortalece pré-conceitos e visões pré-determinadas do poder. Esses, os “arruaceiros”, não são dignos de piedade por parte da sociedade que fica em frente à TV musculando sua consciência.

Então, das entranhas do cerrado mato-grossense, um pequeno grupo de Guarani-Kaiowá, que luta desde há anos por demarcação das terras, sofrendo violência, mortes, assassinatos, desaparição e o sistemático suicídio de seus jovens guerreiros, resolve usar a última arma que lhe resta: o próprio corpo, sua humanidade, o corpo coletivo de toda a gente. O drama dessas famílias vem sendo denunciado ano após ano pelos Cimi, por jornalistas, por estudiosos, por todos os que se importam, mas nunca tocou o coração das maiorias. O ataque diário dos fazendeiros, a violência da justiça local que não os escuta, o preconceito e o ódio dos que vivem na cidade, picados pela ideia de que os índios só atrapalham o progresso, tudo isso é tema de debate e denúncia nos fóruns de luta social. Mas, nunca houve piedade. As terras seguem sendo griladas, roubadas, subtraídas dos índios. A vida foi se extinguindo, o espaço se apequenando. Foi preciso um ato extremo, uma decisão de desespero, para que a nação se voltasse para esses que são os cordeiros de um novo sacrifício. Agora sim é a hora da compaixão. Os “atrasados” não estão armados, não estão em luta, não fazem arruaça. Eles desistiram. Não têm mais força. São muito poucos, estão sozinhos. Eles desistiram. Já não são mais “perigosos”. São apenas as ovelhas do sacrifício. Eles desistiram. Estão vencidos. Então, por esses sim, podemos rezar, chorar, nos apiedar. Sepulcros caiados. Sociedade apodrecida.

Arrisco dizer que os Guarani-Kaiowá sabem muito bem dessa hipocrisia ocidental, dessa pantomima que os piedosos gostam de fazer para parecerem bons. Ah, eles conhecem essa psicologia desde há 500 anos. E, agora, se valem disso para expor o seu drama e para testar a “bondade” branca. Mas, eles não estão brincando. Seu grito de agonia ecoa anos a fio. Nada nunca foi feito. Já basta. Não há sentido viver quando a vida não pode se fazer real. Diante de uma justiça que protege o rico, o grileiro, o ladrão; diante de uma sociedade que vê como normal a miséria e o abandono de famílias inteiras na beira da estrada; diante do opressivo preconceito que as pessoas da cidade manejam cotidianamente, o que fazer? Se vida não há, porque preservar um corpo? A lógica da simplicidade.

E os Guarani-Kaiowá colocam a sociedade brasileira diante de um dilema também. Salvá-los não basta. Definir uma terra para aquelas famílias não significa o fim do drama indígena no Brasil. O apressado movimento dos atletas de consciência em demarcar áreas para essas famílias em particular não acomodará as tensões que eclodem todos os dias nas áreas permanentemente em disputa entre indígenas e grileiros ou entre indígenas e Estado. Há que ultrapassar esse limite da resolução de um drama singular. Há que se colocar de frente com todos os conflitos. Há que se compreender a realidade indígena, conhecer seus costumes, seus deuses, seu modo de organizar a vida. Salvar os Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul não pode ser só um ato a mais de musculação de consciência, praticado numa situação específica, com um grupo específico. O drama indígena em “nuestra américa”, inaugurado com a valentia de Hatuey, atravessando perigosas ondas do Haiti até Cuba para anunciar a desgraça e conclamar a união na luta, não se esgota naquele grupo de homens, mulheres e crianças que hoje assumem a condição de cordeiros de sacrifício. Os indígenas não precisam de nossa pena, nem da nossa comiseração. Eles só precisam ser respeitados nos seus direitos e na sua vontade de ser quem são.

Os Guarani-Kaiowá estão a dar uma lição. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E aprenda!

Padre Roque e Nheçu - uma outra história


relatos da invasão das terras dos Guarani no sul do Brasil

por elaine tavares  - jornalista

Eu tinha 12 anos quando visitei pela primeira vez as ruínas de São Miguel. Morando na região das missões, a história dos guarani que aceitaram a fé católica e ergueram construções incríveis, sempre perpassara nossa vida, desde os primeiros anos. Falava-se disso na escola, em casa, nas rodas de amigos. É muito comum no Rio Grande do Sul o conhecimento da própria história.  Por isso, aquela visita era um acontecimento na nossa vida, e para ele fomos vestidos de domingo.

Também era corrente a lenda do coração de um padre, que falara, mesmo depois do mesmo ter sido assassinado pelos índios. Eram histórias espantosas que as alminhas de criança absorviam com sofreguidão. Nas tradicionais rodas de contação das lendas do lugar, aquela do coração arrepiava o cabelo. Por isso, não foi novidade para nossas curiosas cabeças a ida até o Caaró, onde o padre Roque ( esse era seu nome) havia sido morto.
Minha mãe sempre foi uma mulher de fé e contava com tristeza a história do padre Roque Gonzáles, um paraguaio de nascimento que viera para o outro lado do rio Uruguai disposto a fundar uma redução, abrindo a fronteira para a colonização branca e para a fé católica. Sua missão era catequizar os índios, considerados ferozes infiéis. Ele já havia cumprido uma missão assim, pacificando os guaicurus, da região do Chaco paraguaio, no início de 1600. Então, foi mandado para a banda oriental, nas paragens onde vivia a gente Guarani e Charrua.

Era 1626 quando padre Roque fincou a cruz no lugar que seria a redução de São Nicolau. Conta a história que ele era um homem bom, que amava os índios, com os quais convivia desde criança. Mas, nas terras do lado esquerdo do Uruguai ele encontraria a morte violenta. Era 15 de novembro de 1628, Roque acabava de oficiar uma missa na capelinha da redução que criara. Estava a amarrar o sino quando foi surpreendido por golpes de pau. Morto, teve suas vestes arrancadas e o corpo dilacerado. Foi arrastado para dentro da capela a qual os índios atearam fogo.

E é aí que vem a lenda do coração falante. Contam que no dia seguinte, quando os índios vieram dar mais uma espiada para ver se tudo havia queimado, observaram surpreendidos que o coração do padre seguia pulsando e de dentro dele saia uma voz dizendo: "matastes a quem vos amava e queria bem, porém somente meu corpo, pois minha alma está no céu. E o castigo não tarda". E até hoje o coração do padre segue no santuário, intacto. Assim, por toda a vida a história que ouvimos foi da violenta traição dos indígenas “bestas-feras”.

Mas, eis que ano passado, por essas vias tortas da vida que nos levam a bons caminhos, eu conheci Nelson Hoffmann, um adorável historiador que mora justamente na cidade de Roque Gonzáles, tendo por missão contar a vida das gentes daquelas paragens. E por suas mãos me chegou um livro, escrito por ele, que conta outro lado da antiga história. Um lado que, hoje, certamente me comove muito mais do que o martírio do padre, porque significou o martírio de muitos, de um povo inteiro. 

O livro de Nelson se chama Terra de Nheçu, e ali está exposta a chaga aberta da colonização e da evangelização feita a ferro e fogo. O padre Roque não foi o único a ser morto pelos índios da região chamada pelos originários de "Nesuretugue", o que em guarani pode ser traduzido como "terra que foi de nheçu". Ali também pereceram os padres Afonso e João, que tinham vindo junto com Roque para a jornada "civilizatória". O motivo não foi outro que a completa incapacidade de cada um deles em compreender que as gentes que ali viviam não precisavam de novos deuses, e muitos menos de deuses impostos. Já tinham suas divindades e reconheciam como suas aquelas terras que os brancos vinha ocupar.

Pois as terras aonde os padres jesuítas vieram criar reduções não eram vazias de gente. Ali vivia desde há gerações o povo naqueles dias comandado pelo cacique Nheçu. Seus domínios se estendiam desde a margem direita do rio Ijuí até a foz, no Rio Uruguai. Conta-se que sua influência se espraiava para muito além da região ocupada, e não era sem razão que se chamava Nheçu, "a Reverência". Pois o povo de Nheçu vigiava a movimentação de padres e colonos desde o alto do morro do Inhacurutum e mandava claros recados sobre o que achava daquela invasão. Nheçu era chefe e pajé, portanto representava tanto política como religiosamente todo o povo da região. E essas duas frentes estavam sendo usurpadas sem qualquer prurido. Segundo o relato do livro, Nheçu levou sete anos para permitir a entrada do padre, talvez porque já imaginasse o que viria atrás dele.  O povo branco não respeitava a vida nem os costumes dos indígenas, acreditavam inclusive que nem alma eles tinham. Mesmo os “piedosos” padres que vinham fazer o trabalho sujo de domesticação dos índios, não acreditavam que eles tivessem salvação. As reduções serviam unicamente para avançar na ocupação das terras. A conversão, feita à força, escravizava e destruía a cultura originária.

Nheçu era homem inteligente e esperto. Sabia muito bem o que acontecia quando os brancos chegavam com suas cruzes e suas reduções. Já tivera notícias de outros grupos ao longo do rio que haviam se deixado domesticar e perderam sua identidade. Ele não deixaria que isso acontecesse. Foi assim que enfrentou a invasão. Era uma guerra declarada, não eram tempos de paz. Para os indígenas, a chegada dos padres era o começo do fim. A única saída viável era o ataque às reduções. Nheçu era guerreiro, tomaria as providências.

E foi assim que se deu. Naqueles idos tempos do 1600, quando tanto os portugueses pelo leste, e os espanhóis pelo oeste, avançavam ampliando fronteiras, os povos originários travavam as batalhas tentando manter seu território e seu modo de vida. A trágica morte de Roque e dos outros padres não representou nada mais do que a dolorosa resistência dos índios guarani contra a destruição do seu mundo. A igreja torna os padres seus mártires e ergue santuários que perduram até hoje. Mas, aos índios, nada é reservado, a não ser o esquecimento.

Por isso, o livro de Nelson é um libelo à verdade, à resistência do povo guarani. É a visão dos vencidos finalmente vindo à tona, mostrando que aquela violência não foi o ato gratuito de uma besta-fera, mas o desesperado grito de luta contra a invasão e a opressão. E essa recuperação histórica pode agora mostrar que naquela campanha missioneira nem Roque era um herói, nem os índios selvagens. O que se deu ali foi uma longa batalha entre dois mundos distintos, sendo que um deles, que detinha o poder das armas, não estava disposto a conceder. Assim, é preciso que se reconheça aos indígenas o seu direito de lutar contra a invasão.

O trabalho de Nelson Hoffman responde agora, tantos anos depois, a pergunta insistente que martelava o meu cérebro de menina diante do coração do padre Roque. “Se ele vinha trazer o bem, por que o mataram?” Impor uma fé e um modo de vida não é coisa que possa dar certo, nem nos tempos idos, nem nos dias atuais. Por isso, hoje, andando pelos caminhos das missões, eu posso, muito além de incensar a inegável beleza criada pelos jesuítas, farejar a valentia do povo ancestral, que com suas flechas e seus corpos nus enfrentaram as armas e a arrogância de Castela e de Portugal.

Nelson mantém, na cidade de Roque Gonzales, um jornal, o Nheçuano, cotidiano espaço de resistência, onde as questões indígenas são debatidas assim como as lutas sociais. Também participa da Associação Cultural  Nheçuanos.