Chile: comunidade Mapuche em tempo de retomadas


 A população de etnia mapuche, que vive no sul do Chile, carrega uma marca que se configura imperdoável: nunca foi colonizada. Nem na época da invasão espanhola, nem depois das guerras de libertação. E até hoje, passados sucessivos governos, insiste em sua autonomia. E, aqui, nesse ponto, há que se esclarecer. Autonomia não quer dizer separatismo, como muitos insistem em dizer – tanto à direita como à esquerda. Autonomia significa poder gerir seu território e os recursos que nele existem de acordo com sua cultura, sua cosmovivência. Para tanto, precisa que o estado chileno compreenda isso e pare de tratá-los como se fossem de outro planeta. Em países como a Bolívia e o Equador, por exemplo, esse debate já avançou e o conceito de estado plurinacional é entendido e de alguma maneira vivenciado. Ao aceitar esse conceito os estados-nação, nos mais das vezes criados à revelia dos povos autóctones, pode lidar melhor com as demandas indígenas, respeitando seu modo de vida, sem jogar-los contra a sociedade não-indígena. No México, os zapatistas também atuam de forma a garantir sua autonomia, dialogando com o estado, mas em sistindo em gerir a região onde está de acordo com as regras de sua cultura. É um processo permanente de diálogo e acordos.

A história de autonomia da comunidade Mapuche vem desde os tempos da invasão. Sem nunca ter sido vencidos, eles negociavam diretamente com o rei da Espanha e sempre se mantiveram como um povo em um próprio território, ainda que em relação tensa com a realeza espanhola. Mas, com independência e a formação do estado chileno as terras Mapuche começaram a ser entregues aos fazendeiros que chegavam na região como colonizadores, e desde a luta tem sido grande. Houve um pequeno hiato na época de Pinochet, quando o ditador negociou com os Mapuche e lhes garantiu o direito à posse da terra.

A partir do fim da ditadura e a volta da chamada democracia, a região da Araucania, onde se concentram os Mapuche, voltam ao ser palco de cobiça. Começaram como disputas político-partidas, com a consequente busca por votos e as promessas politiqueiras que foram minando o território e buscando cooptar as famílias para o modo de vida do mundo capitalista. Tanto foi assim que algumas delas chegaram à venda de suas terras, buscando viver na cidade, por conta das promessas de vida melhor. Mas, a maioria permaneceu na terra e em luta.

Não basta a pressão dos partidos na disputa por votos também apareceram na região dos narcotraficantes, e algumas famílias, por conta da pobreza crônica e da falta de perspectiva, sucumbiram, o que leva hoje o estado e a direita chilena apontar cada Mapuche como um terrorista ou um traficante. Nada mais falso e ideológico. São exceções e não representam a realidade Mapuche como um todo.

Hoje – e mesmo nos governos da Concertação, que se diziam progressistas – a relação do estado com os Mapuche não tem avançado para um acordo, pelo contrário, pela comunidade vive, sistematicamente, o ataque violento das forças da repressão. Em consequência, como comunidades reagem, seja resistindo de forma ativa, enfrentando a polícia, ou usando a estratégia da greve de fome. Isso acontece principalmente nas prisões, onde estão confinadas por conta das manifestações ou ações diretas que protagonizam. Atualmente 88 pessoas da etnia Mapuche estão em greve de fome. É por isso que a cada um tanto acontece uma onda de protestos ou de ações de resistência. Alguns deles já sucumbiram nessas greves, é uma estratégia desesperada, e ainda uma das poucas que garantem alguma abertura de negociação.

Como ao longo dos anos os Mapuche foram roubados de suas terras, como lutas se sucedem, ora mais duras, ora menos. Nas últimas semanas uma nova onda de retomadas - recuperação do território - está acontecendo, com os Mapuche visando tomar de volta para si os quase 32 mil quilômetros quadrados que conformam seu território original. E por conta dessa decisão os Mapuche tem ocupado propriedades, carros queimados, maquinários e também os caminhões dos madeireiros que infestam a região, muitos deles tirando madeira ilegalmente. E, como sempre acontece, quando o copo enche demais e os Mapuche passam o ataque em vez de apenas resistir, o governo e meios de comunicação os acusam de bandidos, violentos e baderneiros.

Agora, diante dessa nova onda o presidente Sebastián Piñera sai à opinião pública dizendo que há muitas demandas Mapuche que pode ser resolvida no diálogo, sem a necessidade de ações violentas (as retomadas), como se não fosse diálogo o que os Mapuche vêm tentando desde que o estado começou a roubar suas terras na final do século 19, distribuindo-como para colonos brancos. É falso, portanto, acusar a comunidade de terrorista. Ele reage ao esbulho. Ainda assim, por conta das campanhas sistemáticas contra a etnia, tanto por parte do estado como pela mídia comercial, a opinião pública tende a ver os Mapuches como bandidos. Uma pesquisa divulgada nos jornais chilenos neste domingo, dia 28 de fevereiro, dá conta de que 60% dos entrevistados acreditam que os fazendeiros têm direitos sobre as terras, 55% apontam que os Mapuche são terroristas e 77% pensam que os juízes e fiscais são muito brandos e deveriam agir com mão dura sobre os Mapuche. Isso é resultado de décadas de manipulação da informação.

O parlamento chileno tem pressionado o governo exigindo ocupação militar da área onde as retomadas bem como a instalação do estado de sitio na zona da Araucania, desconhecendo a força de luta dessa etnia que nunca dobrou os joelhos a ninguém. Piñera ainda não mandou exército, mas inveja para a região dos ministros do Interior, da Defesa, o chefe dos Carabineiros e o comandante do Exército, além de liberar os fazendeiros para usar armas "em defesa", o que deve desencadear muita morte na região. O argumento para isso é "o desmonte de "células terroristas e de narcotraficantes", um eufemismo para povo Mapuche. Ou seja, apesar de dizer que as demandas podem ser trabalhadas com diálogo, não é diálogo o que o governo propõe.

Na última semana a comunidade Mapuche lançou um documento, dirigido ao presidente Piñera, dialogando diretamente com o chefe da nação, no qual explica a situação na Araucania e coloca como propostas para a paz. A exemplo das comunidades originárias de outros países latino-americanos, os Mapuche parecem ter bem claro a diferença entre soberania e autonomia. Eles não apresentam proposta de separação do estado chileno, apenas querem viver com autonomia dentro do território onde tradicionalmente existe desde tempos. O mesmo acontece com o Mapuche que vive na Argentina. Se por vezes, nos seus documentos, aparece a questão da separação do estado, ela está sempre vinculada ao fato de que o estado, tanto chileno como argentino, não oferecem canais de negociação e não se dispõem a compreender o modo de vida do "wallmapu", palavra que projeta tanto território como maneira de existir segundo sua cultura. Essa é uma questão chave, principalmente para aqueles que insistem em atacar as comunidades acusando-as de separatismo, tanto a direita, quanto a esquerda, que não compreender conseguem em profundidade a complexidade que há na luta das comunidades originárias. Comunidades estas que não estão dispostas a assumir o modo de produção capitalista, que tem sua própria maneira de organizar a vida e que, segundo o próprio Marx, conforme suas anotações antropológicas feitos mais à final da vida, estão muito mais próximas do estado comunista que qualquer outro, assim como estavam em comunas camponesas russas no seu tempo.

Os Mapuche reconhecem o governo chileno e querem negociar. No documento entregue ao presidente Sebastián Piñera eles informam que as ações efetuadas nas últimas semanas tem a ver com a decisão da comunidade em recuperar definitivamente as terras que foram roubadas pelo Estado chileno durante o que se configurou chamar de "pacificação da Araucania". Lembra que a legislação nacional tem sido muito limitada na que diz respeito aos seus direitos, mas que o direito internacional oferece diretrizes para resolver as questões de direito à terra, território e seus recursos. Esse é um canal importante que precisa ser reconhecido pelo governo chileno.

Também apontam que os prédios pertencentes hoje às empresas privadas e às empresas florestais que estão sendo retomados - e alguns incendiados - se constituíram de forma ilegal e ilegítima sobre o território que é deles. Logo, quem cometeu crime foram eles e não os Mapuche. Recordam que o Estado chileno jamais teve a vontade política de fazer uma negociação de verdade e sublinham que o Relator Especial de Direitos Humanos da ONU, que esteve com eles em 2013, o pedido do próprio Piñera para o que parecia ser abertura de negociação, recomendou 32 medidas, como que nunca foram levadas em conta. Então como vem o presidente agora falando em diálogo?

Os Mapuche sim querem dialogar e encontrar saídas para cada uma das recuperações de terra que estão sendo feitas. E espera que diante do cenário gravíssimo da pandemia e da necessidade da luta dos Mapuche o governo delibere por recursos que garantam o direito à terra que está sendo reivindicada. Se o Estado deu a terra que não era dele a alguém, que agora estamos indenize. Mas, não vem atiçar a opinião pública dizendo que os Mapuche são bandidos.

Essa estratégia de criminalizar tem sido usada desde sempre pelo estado chileno. Primeiro, demonizando o Mapuche diante dos demais chilenos, tratando-os como se fossem os intolerantes que não querem assumir a cidadania chilena. Ora, quem conhece o mínimo da história Mapuche sabe o quanto essa etnia tem para garantir sua forma de viver dentro do chamado estado nacional, sempre lembrando que o Chile, assim como praticamente todos os estados-nação da América Latina, constituídos pelas armas são plurinacionais, tendo dentro deles várias etnias em comunidades organizadas buscando viver em relação ao seu cosmovisão. Essa deveria ser a régua a medir como relações. O estado, que foi o usurpador das terras, deveria assumir sua responsabilidade na tentativa de genocídio e acertar as coisas, atuando no sentido de harmonizar as relações e não a de incentivar mais confronto.

Para os Mapuche a ideia de diálogo está sempre na mesa, mas cientes de que esse diálogo não acontece e que não há qualquer vontade em resolver as questões territoriais, a única saída que encontrar é a retomada. E tanto isso é uma estratégia acertada que agora o presidente finalmente olhou para a comunidade. Só que em vez do diálogo prometido, o que ele invejável é a violência do estado, como sempre aconteceu. Isso não é novidade para os Mapuche.

Nesta final de semana o presidente Piñera se reuniu com os representantes de todos os poderes da nação para discutir um possível estado de sítio na região da Araucania. De novo, Piñera está surdo para as reivindicações do povo Mapuche. Assim, enquanto o presidente trama uma invasão militar, a comunidade segue acenando com o diálogo.

Diante deste cenário, quem são os terroristas?  

Para quem acompanha a luta das comunidades originárias na América Latina não há novidades. Desde a invasão espanhola e portuguesa, que os europeus insistem em chamar de "encontro de mundos", o que se vê é a decisão permanente de destruição das etnias integrarem os povos indígenas ao modo de produção capitalista, no caso como mão-de-obra sem-terra, passível de exploração. A "ousadia" das comunidades em querer permanecer em seus territórios, vivendo de outra forma que não se configura no endeusamento da propriedade privada e da exploração, é vista como criminosa e os ataques são intermináveis.

Mas, por outro lado, como comunidades resistem, sobrevivem e sempre encontram novas formas de garantir seus direitos. Assim faz o Mapuche no Chile como como comunidades originárias no Brasil, cuja estratégia das retomadas também é utilizada sistematicamente. Como muito bem desvela o geógrafo e professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, desde os anos de 1990 como populações indígenas da América Latina inauguraram outra via de luta, para além do eurocêntrico lema "Liberdade, Fraternidade e Igualdade", que liderou a revolução burguesa. Aqui, a palavra de ordem é "Vida, Dignidade e Território". Isso é o que configura uma utopia de Abya Yala. Essa é uma estrada.

Por isso, pode-se esperar mais um banho de sangue caso Piñera insiste em uma solução militar.