A volta dos espelhinhos




Quando os europeus chegaram às margens desse mundo que depois se chamou América encontraram um povo alegre, bonito, hospitaleiro, tendo cada um deles uma forma específica de produção da vida. Tanto os aruak, na ilha de Dominica, quanto os Pataxó na Bahia viram chegar as naves do mar e esperaram na praia, olhar atento e em paz. Tanto que basta ler as cartas de Colombo ou de Pero Vaz de Caminha e ali tudo está muito bem narrado. Os estranhos homens barbudos foram recebidos sem qualquer temor. Os indígenas trocaram presentes, entraram nos navios, tocaram as roupas bizarras e se encantaram com as diferenças.

Mas, em vez de viver o encontro e conhecer as pessoas que lhes ofereciam guarida, os espanhóis só pensavam em roubar seu ouro e fazê-los escravos. Assim, enquanto mandava distribuir contas e espelhos, que encantavam os autóctones, Colombo escrevia ao rei: “Trouxeram louros, bolas de algodão, lanças e outras coisas que trocaram conosco por contas de vidro. Não tiveram qualquer inconveniente em nos dar tudo o que possuíam... Eram de forte constituição, corpos bem feitos e boas feições... Não carregam armas de fogo, não as conhecem. Ao tocarem numa espada, a tomaram pela lâmina e se cortaram sem saber o que fazer com ela. Não trabalham o ferro. Suas lanças são feitas de taquara... Seriam uns criados magníficos... Com cinquenta homens os subjugaríamos e com eles faríamos o que quiséssemos” .

Criados magníficos, serviçais, seres para serem subjugados. Assim pensavam os invasores. E assim procederam. Entraram nas terras e devastaram tudo. Em menos de 40 anos depois da chegada, mais de dois terços da população estava morta. As gentes  ou tinham sido passadas pela espada, ou tinham perecido pelas doenças trazidas pelos europeus e contra as quais não tinham anticorpos. Os que sobraram do massacre foram escravizados, ou empurrados para o interior, onde mais tarde também foram perseguidos e mortos. Das quase cinco milhões de almas que havia por aqui, só na terra brasílis, 400 anos depois, no início do século 20, eram apenas 120 mil. Tudo apontava para seu fim.

Mas, não foi assim. Os povos originários resistiram, mantiveram sua cultura, seus deuses, sua memória ancestral e foram lutando, do seu jeito. No Brasil, figuras como o Marechal Rondon e os irmãos Villas Boas conseguiram garantir que muitas etnias se salvassem do extermínio, encontrando caminhos para a continuidade da existência, consolidando espaços de proteção. As populações cresceram e hoje os povos indígenas somam quase um milhão de pessoas. Iniciaram as retomadas de suas terras e reivindicam seus espaços originais para que possam dar vazão ao seu modo de vida.

É certo que todas as etnias, mesmo as que estão entranhadas na floresta amazônica não podem negar a relação com os não-índios, afinal, são mais de 500 anos convivendo/combatendo. E sabem que, de alguma maneira, precisam encontrar caminhos de relação. Darcy Ribeiro, um dos mais importantes antropólogos brasileiros, acreditava que esse encontro poderia acontecer num processo natural, e que todos poderiam um dia constituir o que ele chamou de “povo brasileiro”. Mas, tudo isso teria de se fazer de maneira livre, sem imposição da cultura de um sobre o outro. Coisa que nunca aconteceu. As já bem conhecidas propostas de integração do indígena na sociedade capitalista de produção nunca foram boas para os povos originários.

Doas anos 90 em diante os povos originários avançaram muito no seu processo de luta e autonomia. Boa parte deles saiu da tutela das igrejas e do estado, passando a exigir direitos e não mais caridade. Tocaram então num ponto crítico para o capital: a terra. Hoje, os povos indígenas tem a posse de 12% do território em suas terras demarcadas. E o agronegócio, que avança como no passado avançavam as famosas “bandeiras” (grupos de matadores de índios que iam abrindo fronteiras), tudo o que quer é se adonar das terras indígenas, cheias de água, floresta, riquezas minerais. E para garantir que as terras deixem de ser esses espaços de proteção e de vida há que eliminar o índio.

Qual a solução encontrada, então? De novo, distribuir espelhos e contas, atraindo-os para a armadilha da destruição. O índio ainda é visto como um “criado magnífico” e é isso que o capital quer fazer com ele. Transformá-lo num trabalhador, sem terra e sem o controle dos meios de produção. Apenas um corpo com força de trabalho que será usado, explorado e jogado fora.

O novo presidente eleito insiste em balançar os espelhos: “os índios querem ser como nós”. De onde ele tirou isso? Lembro aqui as palavras de Hatuey, o cacique taíno, supliciado pelos "caridosos" padres espanhóis. Pouco antes de morrer, sob horríveis torturas, e com um padre querendo convertê-lo ao cristianismo, ele perguntou:

- Lá, no céu dos cristão, estarão os padres e os espanhóis?

E o padre respondeu que sim, lá estariam todos os cristãos.

Ele então negou a conversão. “Não quero o céu. Quero o inferno. Porque lá não estarão e lá não verei tão cruel gente”.

Todo indígena que já sentiu a crueldade do homem branco, que é na verdade o representante do sistema que explora e exclui, sabe muito bem que esse é um sistema que não tem lugar para ele.

Pode até ser que haja um ou outro, já completamente tomado pela lógica do capital, afinal, são mais de 500 anos sendo bombardeado com isso. Mas, com certeza não é o pensamento da maioria.

Os indígenas querem viver suas vidas, no seu modo de existência, em paz. Não querem se transformar em mão-de-obra para o capital, sem suas terras e perdidos de sua cultura.

Bolsonaro acena com a promessa de distribuir “royalties” das usinas e barragens que quer construir nas terras dos índios. São as contas e os espelhinhos. Essa história já foi contada há mais de 500 anos e deu ruim. Deu ruim para os indígenas. Deu bom para os capitalistas. E isso está gravado na memória, gravado no corpo.

Não se trata de manter os povos originários isolados do mundo dos brancos. Isso não é mais possível. O que se trata é de garantir a eles a terra e a autonomia. Se eles quiserem se aculturar, que o façam, devagar e conscientemente. Não pode ser pelo engano ou pela violência.

O brilho das contas sempre será forte. Mas, assim como no passado tivemos Hatuey, Guaicaipuru, Enriquillo, Sepé Tiaraju , Micalela Bastidas e tantas outras, haveremos de ver assomar as lideranças do hoje,  recusando o “céu” do capital, porque ali estão as mais cruéis gentes.

Uma nova etapa de luta começa. Um eterno retorno. E como diria Quixote, contra os gigantes, travando uma longa e feroz batalha. Os 500 anos de violência não exterminaram as gentes originárias. E elas seguirão!


Observatório Indigenista - A Política Indigenista de Bolsonaro

Programa de análise da Política Indigenista no Brasil, com participação de Nuno Nunes (Filósofo e Indigenista), João Maurício Farias (Cientista Social e Indigenista) e Cris Tupan (Assistente Social e Indígena).


Um mundo em pedaços, mas que caminha!


Darcy Ribeiro já mostrou, através de seus inúmeros livros, que é a fazenda que dá início à sociedade brasileira. E a fazenda é coisa que se fez e se consolidou única e exclusivamente por conta da escravidão. Primeiro com a escravidão dos indígenas e, depois, a dos negros. Os brancos, invasores, não queriam saber de trabalho. Matavam os índios, ocupavam as terras, cultivavam com as técnicas mais rudimentares, esgotavam o solo e partiam para outra fazenda. A imensidão do “mundo novo” parecia não ter fim. A lógica da fazenda criada nas américas era o nascedouro do sistema capitalista, pois tinha uma organização empresarial que integrava a mão-de-obra numa única unidade operativa destinada a produção para o grande mercado, sob o comando de um patrão, que visava lucros. “O novo mundo não era uma nação, era uma feitoria”.

Conhecer esse processo de destruição das culturas que viviam nas terras invadidas em 1500 deveria ser fundamental para entender o presente. Mas, essa é uma história bem escondida, porque trazê-la à luz significa encontrar milhões de cadáveres sob o tapete e se deparar  no espelho com uma imagem feia demais. Melhor acreditar que foi um “encontro de culturas” e que venceu a “civilização”. Domesticados, evangelizados, os povos pagãos que aqui viviam poderiam encontrar a salvação no céu. Assim pensava o padre José de Anchieta, que se “emocionava” em saber que as crianças indígenas que eram mortas em profusão, iriam para o céu, porque tinham sido batizadas.

Passaram-se 500 anos e a empresa fazendeira criada pelos que invadiram essas terras ainda continua. O tempo passou, as lutas foram travadas, mas a vitória segue na mão daquele 1% que historicamente se apossou de tudo. Hoje, como antes, não temos um país, mas uma empresa. E, numa empresa só vale o que dá lucro. O que é “inútil” ao capital precisa ser eliminado.

Por isso não é novidade alguma a dança das cadeiras que o novo governo vem fazendo com a Funai, entidade que deveria cuidar dos interesses dos povos indígenas que, a duras penas, vêm mantendo suas existência na grande fazenda Brasil. Num momento diz que vai acabar com a Funai, noutro que ela vai para esse ou aquele ministério. E os povos indígenas ficam com os olhos arregalados vendo os “fazendeiros” traçarem planos.

Na verdade, pouco importa se a Funai fica ou vai nesse redemoinho de pastas e espaços que servem muito mais de acomodação para os “amigos do rei”. O que tem de ser visto aí nesse cirandeio é a relação que o novo governo terá com os indígenas. O presidente eleito já disse claramente, ele que parece ser um conhecedor profundo da alma autóctone: “os índios querem ser como nós”. Ao pronunciar essa frase lapidar já aponta o caminho da já conhecida fórmula da integração. O índio precisa virar branco, porque ele precisa se transformar num trabalhador. Ou seja, ele tem de vender sua força de trabalho, gerar mais-valia para algum patrão e consumir tudo que ganhar para enriquecer outro patrão. Simples assim.

Com essa política de “inclusão” do índio na vida “branca” tudo estará resolvido. As terras reivindicadas serão tomadas pelo estado e poderão ser doadas ou vendidas a preços módicos aos velhos amigos. A fazenda Brasil ficará ainda maior. Francisco Fernández-Bullón, num texto brilhante sobre o papel das corporações na América Latina, mostra como o Brasil vem se transformando cada dia mais no que ele chama de uma “ditadura da soja”, na qual quem dá a linha sobre a vida são as grandes empresas transnacionais que dominam a tríade: sementes transgênicas X agrotóxicos X remédios. Esses fazendeiros modernos querem alargar as fronteiras da soja no Brasil e para isso precisam avançar sobre todas as terras. E esses 12% que hoje estão nas mãos indígenas são quase como as joias da coroa: férteis, ricas em minerais e com plantas passíveis de se transformarem em produtos farmacêuticos.

Assim que a proposta de Bolsonaro que visa transformar o índio em “um de nós” não tem nada de humanista nem de generosidade. O que está em curso é justamente mais uma etapa da acumulação primitiva do capital e significa o sacrifício de mais vítimas ao deus dinheiro.  O “um de nós” que ele quer transformar é fazer do indígena um trabalhador espoliado e explorado. Um a mais na moenda, para ser sangrado até a última gota.

Mas, como diz Ailton Krenak, os indígenas têm resistido por mais de 500 anos e não vai ser agora que eles vão sucumbir a uma mentira tão sem fundamento. Assim, com Funai ou sem Funai, as comunidades organizadas em entidades autônomas, livres da tutelagem de igrejas ou ongs, vão encontrar caminhos de luta.

Nas páginas dos jornais, os  “paladinos da Justiça” e os “bons cristãos” seguem gerando cortinas de fumaça falando em acabar de vez com a corrupção no Brasil. O que eles não dizem é que a corrupção é constituinte do capital e que nessa cruzada moralista – que logo mostrará sua ineficácia  - as vítimas serão as mesmas de sempre. Ou seja, nós, trabalhadores, quilombolas, indígenas, ribeirinhos.

Tal como em 1492 os invasores chegaram com a cruz querendo levar os pagãos ao céu, os novos cristãos empunham seus símbolos para matar, ofender, triturar e explorar em nome da fé no capital. E assim como Anchieta se deleitava em ver os indiozinhos morrerem cristãos, esses novos fazendeiros (que na verdade são vassalos) querem se deleitar em ver os índios de hoje entrarem para a “civilização” que os engolirá.

O que eles não sabem é que aqueles indiozinhos mortos à facão pelos invasores foram semente, como todos os outros que tombaram, seguem brotando. Os povos originários seguirão em luta porque esse é um campo que conhecem bem demais. A mentira da integração é forte, sabemos, mas toda mentira tem perna curta. E os povos sabem onde lhes aperta o calo.

Avante, parentes. Mesmo sem pernas, como diz Residente, a gente vai caminhar.