Morro dos Cavalos é terra Guarani


Justiça dá prazo de 30 dias para a União definir a homologação

Quando os portugueses resolveram descer o litoral da Terra de Santa Cruz e passaram por Santa Catarina em 1515 já avistaram por aqui os Guarani, chamados por eles de Carijós. Essa etnia ocupava grandes extensões de terra desde o que hoje é  o Mato Grosso até a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, e tinham como centro do seu mundo o espaço onde hoje é o Paraguai. Como muitas outras etnias que  fizeram contato com os portugueses, os Guarani os receberam em paz. Eram seres estranhos em barcos estranhos, mas foram acolhidos. Só mais tarde os Guarani compreenderam que ali estavam predadores, e foi isso que os fez moverem-se para dentro do território. A invasão das terras Guarani em Santa Catarina demorou um pouco, e só em 1650 começou a se fazer com mais sistematicidade, em São Francisco do Sul e depois na região de Desterro, hoje Florianópolis, e adjacências. 

É por conta dessa velha história, sabida e re/sabida, que a gente Guarani  que hoje ocupa a terra do Morro dos Cavalos insiste no seu direito de viver naquele espaço. 

O processo oficial de homologação das terras do Morro dos Cavalos começou em 1993, mas a luta já tinha começado lá pelo ano de 1985, portanto, bem antes da Constituição. E mesmo que não fosse, a história registra que essa é uma terra Guarani. Em 1995 a Funai, depois de um estudo técnico, sugere 121 hectares como terra indígena, mas isso não atende às necessidades das famílias, que também insistem em participar de toda a discussão envolvendo a demarcação. É o tempo das  Aty Guaxu ( as grandes reuniões). Com novas regras para demarcações, o processo é reavaliado em 2002 e novo relatório surge, propondo a demarcação de 1.988 hectares. Para isso foram levadas em conta as áreas tradicionais de caça, pesca, coleta de material para artesanato, construção de casas, plantas medicinais e outros espaços necessários para a vida (seu modo de ser – mbya reko). Em 2008 o Ministério da Justiça finalmente reconheceu a terra reivindicada como terra Guarani, e ficou faltando apenas a homologação.

Mas, esse processo todo não aconteceu na paz. Envolveu muita controvérsia, muito preconceito, racismo e violência por parte de políticos da região e de algumas famílias que ocupavam terras no entorno, muitas delas tendo-as comprado de boa fé, enquanto outras não. Foram anos e anos de conflitos, nos quais as famílias Guarani precisaram enfrentar tanto a justiça do mundo burguês, quanto os vizinhos em inúmeras ações de violência. Não bastasse isso, ainda precisaram enfrentar o próprio Estado que se colocou contra a demarcação, visto que pretendia usar as terras para passagem de estrada e túnel. E quando em 2008 o governo federal reconheceu a posse da terra aos Guarani, foi de novo o governo do Estado que entrou com o pedido de anulação da demarcação, fazendo com que o processo fosse parar no Supremo Tribunal Federal em 2014, arrastando ainda mais a luta. Desde aí tem sido uma queda de braço, cheia de idas e vindas. 

Mas, essa semana a Justiça Federal atendeu a uma ação do Ministério Público Federal que pedia que fosse mantida a portaria do Ministério da Justiça, de 2008, que reconhece a terra Guarani. Com isso, foi determinado à União e à Fundação Nacional do Índio (Funai) “providências administrativas e judiciais para impedir ataques, obras, intervenções danosas e invasões na área indígena do Morro dos Cavalos, em toda a sua extensão (portaria do MJ), inclusive por meio da identificação e penalização de pessoas ou entidades que busquem o acirramento dos ânimos e cometam apologia ou crime de discriminação racial”. 

Na decisão judicial foi reiterado que "já se passaram mais de vinte anos desde a edição da portaria em 1995, tendo sido elaborados inúmeros estudos antropológicos, reconhecendo a existência da comunidade indígena de Morro de Cavalos. Assim, não se justifica tamanho atraso da Administração Pública, que é motivado certamente por razões políticas. Os Princípios da Eficiência da Administração Pública e da Razoável Duração do Processo não se coadunam com um atraso de mais de vinte anos para a conclusão do procedimento administrativo, o que evitaria inúmeras agressões físicas e morais preconceituosas que tem sofrido a comunidade indígena".

Dito isso, a Justiça também determinou à União a finalização do procedimento de demarcação, com a assinatura da homologação pelo presidente da República, no prazo máximo de 30 dias, e a consequente publicação oficial e registro.

Essa decisão foi uma importante vitória não só para os Guarani do Morro dos Cavalos, mas para os povos indígenas de todo o país, principalmente nessa semana de luta contra o PL 490, que justamente objetiva tornar legal a proposta de “marco temporal”, que é a de estabelecer que só podem ser consideradas terras indígenas as que estiverem ocupadas por alguma etnia nesse ano específico. O projeto, se passar, pretende servir de barreira para a demarcação de inúmeras terras hoje em disputa.  O projeto ainda abre caminho para que o governo retome as terras indígenas já demarcadas, dá as propriedades indígenas que foram compradas o estatuto de propriedades privadas, viola o direito à consulta, permite a extração das riquezas nas terras demarcadas e mexe nas políticas referentes aos povos isolados. Ou seja, na prática, entrega as terras indígenas para a sanha privada.   

Não é sem razão que as mais de 300 etnias que sobrevivem ainda no Brasil estejam em luta, com um acampamento em Brasília, fazendo marcação cerrada no STF, onde ocorre uma votação sobre o marco temporal e também no Congresso Nacional, buscando evitar a votação do PL 490. Mas, ainda assim, o projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e segue seu caminho rumo ao plenário, pavimentado por muita violência e repressão aos povos originários que estão na capital.

Nessa quarta-feira o STF volta a se reunir e novas manifestações estão agendadas. 

No Morro dos Cavalos, a comunidade comemora a decisão da Justiça, ainda que só vá celebrar mesmo quando a assinatura de Jair Bolsonaro definitivamente encerrar esse processo. Enquanto isso, os Guarani estão firmes na luta, até porque a aprovação do PL 490 pode significar um retrocesso tremendo, tanto para eles quando para todos os parentes.  


O Canadá e o genocídio Indígena


Escolas de "reeducação" existiram até 1990

Na última semana, na província de Columbia Britânica, foram encontrados os corpos de 215 crianças num terreno da tristemente lembrada Escola Residencial para Indígenas Kamloops. Esta foi uma escola aberta em 1890 pelo governo canadense e dirigida pela Igreja Católica, que “reeducava” crianças indígenas, visando torná-las “canadenses”. Esse processo de sequestro das crianças de suas famílias, educação forçada, perda de cultura original, tortura e morte durou quase um século já que a escola só foi fechada em 1970. Outras delas, dirigidas também por anglicanos, metodistas e presbiterianos,  ainda seguiram funcionando até 1990.

Segundo informações da Comissão da Verdade e da Reconciliação, desde a invasão do Canadá sabe-se que as igrejas realizavam uma sistemática ação de destruição da cultura, através da evangelização, mas a partir do ano de 1840, o estado oficialmente assume uma parceria ao criar as primeiras escolas para indígenas na cidade de Ontário. O governo então dava os recursos, e as igrejas providenciavam a “educação”.  Só que o que era para ser um processo de inclusão dos povos originários à vida do país, acabou sendo um circo de horrores.

Em 1898 já existiam 54 escolas no país dentro do modelo de “Escolas Residenciais”, o que no Brasil se assemelharia aos internatos.  E era para esse tipo de escola que eram mandadas as crianças indígenas, num atentado sem limites contra suas crenças e seus costumes.  Em 1946 foi registrado o número máximo de escolas: 74. E, segundo a lei, os pais que se recusassem a mandar os filhos eram punidos criminalmente. Não havia escapatória. Os indígenas eram obrigados a enviar os filhos para o inferno. 

Não bastasse isso, muitas dessas crianças eram submetidas a violências de toda a ordem, inclusive sexuais. A comissão que hoje trabalha para trazer à luz todos esses crimes, cometidos com o apoio do estado canadense, já documentou 3.200 mortes de crianças nessas escolas, decorrentes de maus tratos, abandono e suicídio. “O governo canadense manteve essa política de genocídio cultural porque queria se desvincular de suas obrigações legais e financeiras com os povos indígenas e assim poder controlar suas terras e seus recursos”, denunciam.

Segundo a Sociedade para Atenção a Infância e Famílias das Primeiras Nações, mais de 150 mil crianças indígenas passaram por essas escolas residenciais numa política deliberada de genocídio cultural. As famílias eram obrigadas, sob ameaças de prisão, a cederem os filhos para que aprendessem a língua do colonizador e fossem roubadas de sua cultura ancestral. 

Agora, com essa descoberta de mais de 250 corpos, cresce a demanda por parte da sociedade para que o governo declare um Dia Nacional de Dor em honra de todas as crianças indígenas que foram obrigadas a viver esse terror. Existem informações de que pode haver bem mais corpos não apenas nessa escola, mas também em outras, o que leva a pensar que além do etnicídio e memoricídio, o governo e igreja também permitiram que as crianças fossem mortas sem que sequer as famílias ficassem sabendo. Um verdadeiro horror. 

Há que sempre lembrar, nunca esquecer e jamais perdoar. O estado canadense precisa prestar contas de seus crimes com os povos originários.