2010 - O socialismo na América Latina

04.05.2010 - O socialismo ainda anda bem distante dos governos da América Latina, pelo menos é o que pensam alguns teóricos e pesquisadores que participaram das Jornadas Bolivarianas de 2010, cujo tema foi justamente este. Na análise de um dos criadores do termo “Socialismo do Século XXI”, esta é uma forma de governo que ainda não encontrou guarida na vida dos países que atualmente estão na ponta de lança das mudanças estruturais. Segundo Heinz Dieterich, governos como o da Venezuela, Bolívia e Equador, apesar de avançarem no processo de transformação, ainda não deram rédea a mecanismos de consolidação do que define como sendo socialismo. “É certo que a discussão sobre o socialismo do século XXI começou na Venezuela, houve um grande debate, mas não redundou em profundidade, o que significa que, lá, não há grandes avanços na consciência anticapitalista”. Heinz também deixou claro que é fato de que na Venezuela, sob o comando de Chávez, o governo avançou nos mecanismo de democracia, garantindo mais poder ao povo, como é o caso da possibilidade do referendo. “Há eleições limpas, há muita participação popular, mas, a economia segue sendo a de mercado. Não há, portanto, socialismo, a empresa privada segue sendo fundamental, os meios de comunicação são privados”.

Heinz diz que a Venezuela segue os preceitos do chamado nacional/desenvolvimentismo, exatamente como o fizeram Getúlio Vargas, no Brasil, Domingos Perón, na Argentina, Lázaro Cárdenas, no México, Salvador Allende, no Chile e até mesmo Bolívar, logo depois da independência. “Eles seguiam o modelo da Grã Bretanha, de um capitalismo protegido pelo Estado. E para os ingleses foi bom, garantiu-lhes muito poder. Eles tinham o discurso do livre comércio, mas era para os outros, não para eles”. O teórico alemão insiste que este é o modelo também seguido pelo Brasil, Argentina, e outros chamados “progressistas”. “O Lula e os demais estão ancorados num modelo que foi extraordinário, e este era também o debate entre os independentistas. Bolívar queria o sistema inglês e os seus inimigos queriam o livre comércio, eram os neoliberais daquela época e foram os que venceram”. Segundo Heinz, os governos latino-americanos que, ao longo da história, decidiram-se por um nacionalismo/desenvolvimentista foram os que mais se aproximaram do povo, os que avançaram, e por conta disso sofreram as ditaduras.

Hoje, pode-se vislumbrar uma nova fase de desenvolvimento na América Latina que, sem dúvida, começa com Hugo Chávez, na Venezuela e depois se estende para Bolívia e Equador. É um desenvolvimento endógeno, uma proposta de valorização das coisas nacionais, de investimentos no mercado interno, acompanhado de transformações estruturais importantes na saúde, na educação, na organização comunitária, no próprio poder. “A oligarquia não podia combater o Chávez acusando-o de desenvolvimentista, não encontraria eco, então se aproveitou do fato de o presidente começar a falar em socialismo. Acusá-lo de socialista assustaria os conservadores. Mas não há socialismo na Venezuela. O que há é um nacional desenvolvimentismo, que tem seus avanços, é certo, mas que não é socialismo”.

E o que é, afinal, o socialismo?
A idéia de socialismo é eminentemente européia e aparece, segundo Engels, lá pelo século 15, embutida nas propostas dos revoltosos camponeses da Inglaterra e da Alemanha (como Thomas Münzer, por exemplo). A sistematização do conceito, na sua versão utópica, aparece nos séculos 16 e 17, como um sistema ideal para organizar a sociedade baseado na igualdade entre as pessoas, na distribuição das riquezas e na vida boa para todos. No século 18, teóricos como Morely e Mably pregavam um jeito espartano de viver, que garantia a liberdade e a igualdade, mas supria o gozo de viver. Mais tarde vieram os chamados “utopistas” como Saint-Simon, Fourier e Owen, que propunham a abolição das classes e a vida plena para todos. Ainda segundo Engels, o problema dos utopistas é que não propunham a mudança desde uma classe específica – como o proletariado. Eles reconheciam a sociedade burguesa, do capitalismo emergente, como uma coisa ruim, injusta, mas acreditavam que ela só não dava certo porque não havia nascido “o homem genial”, governando unicamente pela razão. Com a chegada deste homem, tudo poderia mudar, seria instaurado o Estado da Razão. Seus limites, pondera Engels, estavam determinados pela ainda incipiente produção capitalista. Acreditavam que bastava difundir a idéia de que o socialismo era a expressão da verdade, da razão e da justiça, para que ele se fizesse.

Marx vai propor mais tarde o que chamou de socialismo científico, baseado na razão sim, mas incluindo aí a historicidade, já ancorado na análise de um capitalismo real, desenvolvido, que incorporou a grande indústria e expôs as mazelas da divisão de classe. Observando as multidões exploradas e despossuídas que abundavam no século 19, as greves que assomavam entre os trabalhadores, as lutas operárias, Marx compreendeu que o socialismo não era algo nascido apenas no campo da razão, mas sim o produto necessário da luta entre as classes formadas historicamente no modo de produção capitalista. Com isso, pensou que havia que constituir um sistema para explicar essa sociedade capitalista e aí sim, desde esta materialidade, propor um novo jeito de organizar a vida. Ele discordava dos utopistas que apenas criticavam o mundo burguês, sem, contudo, explicá-lo para que, entendido, pudesse ser superado.

Assim, no desvelamento do sistema de dominação capitalista, Marx mostra que o socialismo é uma forma de vida que só pode ser proposta e construída pela classe dominada, naqueles dias, o proletariado. Assim, a sociedade socialista seria então aquela que aboliria a propriedade privada, acabaria com a exploração, reconheceria o caráter social da produção, socializaria os meios de produção, extinguiria as classes. Na prática, como esclarece Engels, seria um jeito de organizar a vida em que, através de um sistema de produção social, seria assegurado a todos os membros da sociedade, uma existência que, além de satisfazer as suas necessidades materiais, asseguraria o livre e completo desenvolvimento de suas capacidades físicas e intelectuais.

O socialismo do século XXI
A idéia de um socialismo do século XXI começou a caminhar pela América Latina a partir da reflexão do professor da UNAM, Heinz Dieterich. Segundo ele, os novos tempos exigem reformulações no conceito. “Com Marx aparece o socialismo científico, baseado no materialismo dialético, que em última instância significa que tudo está em movimento. Materialismo significa que tu reconheces um mundo fora de ti, objetivo, independente do observador, e dialético se refere ao movimento. O único que existe no universo é a matéria, ela tem extensão física e aí nasce o espaço, tem corporalidade e está em constante movimento, o que significa mudança. Por isso é ridícula a idéia de Francis Fukuyama, porque contraria o axioma do cosmos. Conhecer esse movimento pressupõe que podemos prever os desastres econômicos, assim como prevemos os furacões. Isso é ciência”. O teórico alemão radicado no México recordou que Lenin tentou implementar o socialismo, experimentar na prática, mas as condições não o permitiram, surgindo então o bolchevismo, a economia planificada. Isso colapsou e hoje aí está outra concepção do socialismo, que chama do século XXI. “É uma democracia participativa, com economia planejada no valor do trabalho e não no valor de mercado. São diferenças abissais. Por exemplo, em nenhuma constituição do mundo é o povo que decide se o país vai para a guerra. A decisão está na mão de uma pequena elite. Nesta democracia burguesa o dinheiro tem uma influência tremenda. Exemplo: a taxa de milionários nos Estados Unidos é de 1% da população, mas no Congresso Nacional é de 60% a 90%, ou seja, é uma plutocracia. Mandam os ricos, que são minoria”. Por conta disso, um sistema de voto secreto e universal por si só não significa democracia.
Pois o socialismo do século XXI propõe outra forma de organizar a vida, democratizando não apenas a política – com outras formas de participação popular que não só a eleição ritual – mas também a economia, a cultura e o poder militar. “O orçamento deveria ser decidido pela população, outras questões da economia também. Com a televisão e a internet se poderia informar e formar os cidadãos”.Essa minoria que hoje manda no mundo pretende continuar apostando na economia do mercado, acreditando que o mercado tem mais eficiência para coordenar o processo, que essa é uma área complexa e não pode ficar nas mãos de um partido ou das gentes. Isso não é mais crível. “Há que clarear essa mentira. Na União Soviética o socialismo não naufragou por conta da planificação. Toda a economia é planificada, inclusive a de mercado. Até no neolítico 10 pessoas tinham que planejar como caçar um animal. No capitalismo também há planejamento. Mas tanto no socialismo soviético como no capitalismo era uma minoria que fazia isso. Não havia a consulta ao povo.
No socialismo do século XXI tem de haver essa participação, essa planificação precisa ser democrática”. Heinz também avança na proposição de outra medição do trabalho. Hoje, o preço de mercado é uma expressão de poder, o aumento de salário só vem se houver sindicato forte, lutas descomunais, competições. Os empresários tem o poder, dirigem e controlam a economia. No socialismo pode-se ter outra medida de valor, a quantidade de energia, a quantidade de informação ou valor do trabalho. “No socialismo do passado a propriedade privada era considerada o grande mal, havia que acabar com ela. Os social-democratas encontraram um jeito de mantê-la. Elas seguem privadas, mas pagam impostos que serão distribuídos. Não deu certo. No socialismo do século XXI, não importa quem tem os meios se for tirada do empresário a faculdade de explorar o trabalhador. Cada trabalhador tem direito ao valor total do seu trabalho. Se trabalha por 40 horas recebe produtos e serviços iguais aos de 40 horas. O que não há é a permissão de enriquecer”.No socialismo do século XXI, diz Heinz, também não cabe haver partido único, porque se trata de trazer ao povo mais democracia. Hoje a conformação de classes é diferente da do tempo de Marx. “Nesta fase de transição é preciso organizar as forças em um centro comum, um centro de gravitação comum, mas não única, como a Frente Amplia, no Uruguai. Não é partido único. Não queremos monopólios nem na economia nem na política”.

A América Latina
Este espaço geográfico que hoje denominamos “Américas” foi conhecido pelos europeus nos estertores do século 15, quando por aquelas terras já começava a declinar a chamada Idade Média. As miríades de reinos que lutavam entre si iam se juntando e prenunciando o que mais tarde viriam ser as nações. Era um tempo de mudanças e as terras encontradas no caminho para as índias iriam acelerar estes câmbios, financiando, inclusive, a revolução industrial inglesa que foi o estopim da consolidação do modo capitalista de produção. Mas, o desconhecimento dos europeus nunca significou que por aqui, as gentes que habitavam o lugar, fossem povos sem história, como chegou aventar Marx. Grandes civilizações haviam florescido, muitas delas até mais avançadas na organização da vida, do que a Europa daquele então. Ainda assim, como os conquistadores não estavam dispostos a qualquer “encontro de culturas”, toda esta história das gentes originárias foi descartada como “barbárie”, “selvageria”, “ignorância”. Os que invadiram as terras de Abya Yala só queriam saquear as riquezas e nunca reconheceram os que aqui viviam como iguais. Quando o sistema colonial se instalou, trouxe para cá o modo de vida da Europa, solapando a cosmovisão autóctone, dizimando povos, submetendo os sobreviventes.

Este domínio se perpetuou, ainda que não sem luta. Desde a invasão, vários povos se rebelaram, na resistência e na tentativa de recuperar seus territórios, sua forma de vida. Foram vencidos, mas, enquanto todos achavam que ali estava uma gente derrotada, eles constituíam, no silêncio da opressão, suas estratégias de sobre-vivência. E, quando ninguém esperava, no bojo do que a Europa e os entreguistas nacionais chamavam de “celebração dos 500 anos”, surge, das profundezas desta Abya Yala, o grito das gentes originárias. “Nada há a celebrar a não ser a retomada de um novo ciclo. O pachakuti esperado”, diziam as gentes autóctones.

Segundo Pablo Dávalos, professor da Universidade Católica do Equador e assessor na CONAIE (Confederação Nacional dos Indígenas do Equador), os anos 90 trazem demandas dos povos originários que não são incorporadas pela esquerda, por isso há uma certa desconfiança com relação ao chamado “socialismo do século XXI”, porque ninguém viu ali contempladas essas reivindicações que extrapolam as já conhecidas lutas contra a dizimação de sua gente e da sua cultura. “A proposta de plurinacionalidade, por exemplo, passou incólume nos programas da esquerda. E esta proposta é a que converte o índio em um sujeito político que disputa no neoliberalismo”. Os povos originários ultrapassam o tempo reivindicativo, agora eles estão propondo novas formas de organizar a vida, que oferecem a partir de sua ancestralidade. E aí há que se pontuar muito bem: não é um retorno ao passado, mas uma retomada, desde o passado, de elementos que, dialeticamente, podem ser incorporados à vida atual, tais como a solidariedade, a cooperação, a distribuição coletiva das riquezas (elementos que, na verdade, se encontram com a idéia de socialismo). “O sistema político desconhece o índio como sujeito e para a esquerda o índio se converteu em camponês. Não há uma discussão sobre o que significa o território. O povo da direita fala em modernização no campo, a esquerda em reforma agrária. Os indígenas falam em território, que é muito mais do que terra para plantar, é espaço de vivência, de representação cultural e religiosa”.

Pablo Dávalos fala de uma ontologia política do movimento indígena que atua na radicalidade, oposta ao ser moderno, que propõe a alteridade, ou seja, a capacidade de as pessoas viverem juntas, respeitando, de verdade, o outro. “Na sociedade burguesa, e mesmo na esquerda, não se concebe o índio com vida e desejos próprios. Parece que sempre há que ter uma mão, controlando. Mas a história está aí mostrando que os grandes movimentos políticos dos anos 90 e desta primeira década do terceiro milênio tem uma assinatura indígena. A esquerda não vê porque os índios não estão nos seus manuais de desenvolvimento”.

E aí entra outro nó que, nesta parte do planeta, há que se desatar. Com uma população indígena bastante expressiva, a América Latina está propondo outras formas de organização da vida que não aparecem nos textos dos grandes pensadores socialistas. Porque, afinal, raros tem levado em consideração estas propostas teóricas que nascem da vivência originária. Mesmo nas experiências transformadoras como a da Venezuela e do Equador, pouco espaço se dá a cosmovisão dos povos autóctones. “Na nossa Constituição (do Equador) logramos muitas vitórias, como estabelecer os direitos da natureza e colocar nosso conceito político de organização que é o de Sumak Kawsai, mas, ele, na verdade, não é compreendido de fato. Basta ver como o governo de Rafael Correa está tratando a questão da água hoje, sem respeitar a decisão dos povos originários”, diz Pablo.

É importante lembrar que entre as comunidades originárias que vicejam na região que vai desde a Venezuela até a Patagônia, seguindo a coluna vertebral latino-americana, que são os Andes, as palavras que designam a organização da vida são outras. Não se fala em socialismo ou desenvolvimento (palavras e conceitos nascidos na Europa). Fala-se em “sumak kawsai”, que na língua quíchua significa “regime de bem viver” e expressa uma proposta complexa de organização.

Pablo lembra que no sistema capitalista, e na era moderna, de concepção européia, a idéia de progresso está vinculada a noção de “ir adiante”, já que a noção de tempo se expressa de forma linear: passado (ontem), presente (hoje) e futuro (amanhã). Assim, as gentes, para serem modernas, precisam avançar para o futuro. Mas, na compreensão dos povos originários o tempo se curva. A mesma palavra que designa passado é usada para dizer futuro, a vida se expressa em ciclos. Também na cosmovisão de grande parte dos povos andinos não existe a possibilidade da acumulação, tanto que se alguém tem algum “lucro”, se sente obrigado a destruído e isso se dá a partir de uma grande festa coletiva. Tudo o que sobra precisa ser repartido comunitariamente. E, no cerne de tudo isso está a capacidade do homem de viver em harmonia com a natureza. Este é um jeito de viver que se confronta diretamente com o sistema capitalista. E é um jeito originário, consubstanciado no sumak kawsai, originário de Abya Yala . “Mas e os marxistas, as gentes da esquerda, conseguem entender isso? Concebem respeitar essa forma de ver o mundo? Conseguem incluir este modo de ser nos seus manuais?”

O pachakuti
Para os incas, quando chegaram aqui os conquistadores, foi inaugurado um ciclo do pachakuti, que significa “o mundo pelo avesso, o mundo no caos”. Hoje, com as transformações que tomam forma na América Latina, os levantamentos dos povos originários e a percepção de que a preservação da natureza é também uma questão da sobrevivência da espécie, vive-se o início de um novo pachacuti, “el mundo al revés”, pelo avesso de novo, mas desta vez com as gentes organizando a vida e aí, não só os indígenas, mas também os empobrecidos de todas as cores. É a idéia do tempo que se curva, um outro começo, saída do tempo de caos para o tempo da harmonia. Por conta desta crença, as comunidades revigoram as lutas na defesa da Pacha Mama que é, em última análise, a defesa da vida mesma.

No que diz respeito ao mundo não-índio, os intelectuais de esquerda teriam de enfrentar eles mesmos um “pachakuti”, um desordenamento mental, capaz de compreender esta forma de ver o mundo. Quando aqui chegaram os invasores, sedentos de ouro, até havia um motivo para desconhecer as culturas locais. Mas, hoje, e desde a esquerda, isso não pode acontecer. E, se o socialismo é o que ordena e define as reivindicações da maioria, como diz José Carlos Mariategui, está na hora de incorporar aquilo que é essencial para as gentes originária como o estabelecimento do Estado Plurinacional, estatuto jurídico que reconhece as comunidades tradicionais originárias como sujeito político real. E isso implica numa mudança radical de perspectiva, principalmente num país como o Brasil, onde as comunidades autóctones foram quase dizimadas e, as sobreviventes, até hoje vivem tuteladas pelo estado como se fossem incapazes de organizar suas vidas de forma autônoma.

Ao fim, o que ficou dos debates de quatro dias em Florianópolis foi esse desafio. A capacidade da esquerda revolucionária de Abya Yala de desvendar as forças e os sujeitos que atuam no mundo de hoje, e a necessidade de colorir o conceito de socialismo, não com as facetas alegres da pós-modernidade que usa o multicultural como aceitação acrítica do que aí está. Mas o colorido da “wiphala”, a bandeira do movimento originário, incorporando neste conceito as demandas destes povos que não querem mais ser “atores” sociais, que falam um texto escrito por outrem, mas sim autores de sua própria história, escrevendo eles mesmos as suas falas. Aí sim, quem sabe, este espaço geográfico possa constituir, com o aporte de todos os que aqui vivem, e que sonham e lutam por transformações, o socialismo indo-americano, como queria Mariategui, ou, enfim, o sumak kawsai (o bem viver).

2010 - Conferência Mundial dos Povos

23.04.2010 - Veja o vídeo da abertura da Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática, que aconteceu na Bolívia.

2009 - Já acabou a época de acabar”: avança o valente povo Xokleng

17.12.2009 - Quando Cabral chegou às águas da Bahia, na região sul de Pindorama, onde hoje é Santa Catarina viviam os Guarani, os Kaikang e os Xokleng, sendo que os primeiros vestígios de comunidades humanas nestas paragens datam de 5.500 anos. Para os Xokleng, a terra conhecida chamava-se La Klãnõ, que na sua língua quer dizer “território dos caminhantes do sol”, ou “da gente que vive sob o sol”. Eles são do tronco lingüístico Jê e, segundo estudos feitos pelo antropólogo catarinense Silvio Coelho dos Santos, no passado, viviam divididos em três grandes grupos. Um deles circulava pela região do Vale do Itajaí, outro na cabeceira do Rio Negro , na fronteira com o Paraná, e o terceiro, no sul, próximo a Tubarão. Eram nômades, caminhavam pelo território em busca de caça e pesca e não eram dados as artes agrícolas. Seu centro vivencial se dava em torno da mulher. Ela decidia onde parar, descansar suas tralhas domésticas e fazer o fogo. Ali o grupo então permanecia por alguns dias. Viviam no tempo e só construíam abrigos feitos com ramas de árvores nas épocas de chuva. Seu espaço de andanças na busca da caça cobria desde Curitiba, no Paraná, até a região de Porto Alegre. No litoral viviam os Guarani, e os Kaigang um pouco mais para dentro, no lado oeste. Com estes, os Xokleng vivam de escaramuças.

Por conta da proximidade com o mar os Guarani foram os primeiros a serem encontrados pelos brancos invasores, quando estes começaram a descer a costa. Logo passaram a ser capturados para servir de mão de obra escrava. Mas, por causa da resistência que empreenderam e também das doenças, este povo foi praticamente dizimados. Poucos restaram, fugindo para dentro do continente, outros foram escravizados. Já os Kaigang e os Xokleng só foram vistos bem mais tarde quando os paulistas iniciaram as rotas de comércio com o Rio Grande do Sul tendo os tropeiros como os desbravadores, por volta de 1728, portanto, mais de 200 anos depois da conquista. Mas, eram encontros fortuitos. No geral, quando viam os brancos ocuparem seu território, os Xokleng resistiam bravamente, passando a ser reconhecidos pela sua valentia. A região ocupada por esta etnia era o espaço das araucárias, que, para eles tinha importância fundamental. Toda a base da sua alimentação era o pinhão, e é bem provável que tal qual os Mapuche, da Argentina e Chile, também moradores de terras de aruacária, estes espaços fossem considerados sagrados.

Foi com o surgimento da cidade de Lages, em 1771, que a saga de destruição dos originários tomou mais força. Colonos vindos de São Paulo ou de outras regiões do Brasil montavam fazendas para criação de gado e cercavam as terras. Depois, com a chegada dos imigrantes europeus, no início do século XIX, outros espaços de terra lhes foram tomados, a ponto de uma carta régia de Dom João VI estabelecer o início de uma guerra de extermínio. Os conflitos eram inevitáveis. Uma triste história, pois tanto os Xokleng defendiam suas terras, quanto os imigrantes buscavam o cumprimento de uma promessa de vida melhor. Mas, neste embate, os originários eram os que levavam a pior, uma vez que sequer eram considerados “humanos”. Pejorativamente chamados de “bugres”, os Xokleng passaram a ser caçados como bichos pelos “bugreiros” que os vendiam no mercado de escravos e defendiam as terras dos imigrantes. Naqueles dias, a vida dos Xokleng, que adentravam o mato e observavam, curiosos, a horda dos brancos, entraria num redemoinho sem volta.

Os Xokleng tinham uma longa tradição guerreira, uma vez que viviam de escaramuças com os Kaigang e a presença dos brancos ia, pouco a pouco, inviabilizando a coleta de alimentos. Sem a prática da agricultura, guerrear com os invasores passou a ser vital para os grupos originários. Uma coisa levou a outra, e o governo também decidiu proteger as terras com milícias armadas. Cada vez mais os indígenas ficavam encurralados, uma vez que não tinham para onde fugir. Assim, exército regular e tropas de bugreiros iniciavam a “civilização”, como eles mesmos anunciavam nos jornais da época. E, esta, nada mais era do que o massacre sangrento de famílias inteiras dos Xokleng. Nem mulheres ou crianças eram poupadas. O índio era visto como um simples obstáculo que deveria ser transposto em nome do progresso e da vida feliz das famílias brancas. Ninguém levava em conta que aquela era uma terra que tinha dono.

A “pacificação”
No início do século XX, depois que grande parte do território dos Xokleng já estava loteado e um expressivo número de indígenas mortos, em 1914 dá-se o que ficou conhecido na história por “pacificação”. Naqueles dias, a já então República tinha o índio como um “problema nacional” e no começo do século XX Cândido Rondon havia iniciado sua cruzada de integração do indígena à vida brasileira, sempre pela paz. Em 1910 o Estado criara o Serviço de Proteção ao Índio, tendo como lema o axioma de Rondon: morrer se for preciso, matar nunca! Chegava a hora do fim do massacre pelas armas e começava uma proposta de “integração” que, apesar da boa vontade, também confinava o índio e obrigava os povos a assumir uma nova cultura, assim, de chofre, num choque cultural do qual poucos se recuperaram.

Em Santa Catarina a história oficial conta de um jovem idealista, Eduardo Hoerhan, que havia assumido o SPI e buscava um encontro com os Xokleng para acabar de vez com as escaramuças entre indígenas e colonos imigrantes. A proposta era pacificar e aldear os Xokleng para que as comunidades criadas nas terras originárias pudessem produzir e viver em paz. Dos desejos dos índios ninguém quis saber. E assim, contam os livros que depois de algum tempo de “namoro”, com conversas (Eduardo arranhava a língua dos Xokleng) e com a entrega de presentes, ele logrou atrair os indígenas e pelos menos uns 400 deles passaram a freqüentar o chamado “Posto de Atração”. Mas, apesar disso, os “bugreiros” continuaram a atuar na região, afinal, muitos grupos de indígenas ainda vagavam pelas florestas e até os anos 40 ainda se avista um ou outro resistindo ao aldeamento.

Foi no ano de 1918 que Hoerhan chegou a Ibirama com um grupo de 200 Xokleng e foi ali que se demarcou um espaço para que a comunidade passasse a viver. Naqueles dias, conta Silvio Coelho, os chamados “botocudos” eram como bichos no zoológico e de todos os cantos do estado vinha gente para vê-los, acuados e tristes, finalmente pacificados. Assim, de caminhantes sob o sol, nômades e livres, os Xokleng passaram – num átimo - a sedentários e dependentes da boa vontade governamental. Uma mudança brusca demais na cultura e no modo de ser a gerar conseqüências que perduram até hoje. Uma foto, reproduzida no livro de Silvio Coelho “Índios e Brancos no Sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng”, dos primeiros anos de “pacificação”, é a prova viva do horror vivido pelas gentes Xokleng. Nela, uma mulher abraça uma menina, mas o que toca a alma são os olhos. Os da mulher expressam um profundo sentimento de tristeza e derrota e a menina olha para câmera cheia de terror. Agarradas, as duas se protegem, mas sabem que a vida nunca mais será a mesma. É o fim do seu mundo.

A voz Xokleng
Convidados pelo Grupo Livre de apoio aos Povos Indígenas de Santa Catarina e reunidos em Florianópolis, em dezembro de 2009, os 18 caciques da área Xokleng La Klãnõ, apresentaram outra versão da história, desde as suas memórias mais antigas. Conta o diretor da Escola Bugio, José Cuzung Ndilli, que a chamada “pacificação” não foi conseguida por Eduardo Hoerhan, como diz a versão oficial. “Foram nossos líderes que, em 1909, se juntaram e decidiram que não dava mais para ficar guerreando com aquela gente que chegava. Foram eles que decidiram fazer o contato com os brancos, indo na casa de Hoerhan. Foi nosso povo que decidiu pela paz. A gente confiou nos brancos e é tão rejeitado até hoje”. Naqueles dias, diz ele, dos 400 que fizeram contato, sobraram apenas 120, por conta das doenças que apareceram. “Hoje, passados 70 anos, nós somos dois mil índios e continuamos crescendo. Já acabou a época de acabar. Nós somos um povo difícil de extinguir”.

Ndilli diz que atualmente os Xokleng ainda sofrem com a perseguição e o preconceito. Isso sem falar na falta de respeito do governo para com eles, como ficou claro na construção da Barragem Norte, em José Boiteaux, nos anos 70, que alagou terra e desalojou várias famílias, diminuindo ainda mais o território. “A gente sabe que as lideranças da época aceitaram a barragem, mas como foi o processo? O branco sempre quis ser superior ai índio e não leva em conta as nossas necessidades. Ele sabe que a terra é nossa, mas tem essa ganância”. Há pouco tempo, em 1991, os Xokleng chegaram a tomar o canteiro de obras da barragem exigindo o cumprimento das promessas, que não saíram do papel. “Tem muita gente sem casa, não há um estudo de impacto ambiental da barragem e nós queremos ver. Porque se o verde da bandeira ainda está aí, intacto, é porque nós protegemos. O que é história de progresso para o branco, pra nós é sofrimento”.
O professor Ndilli insiste que os Xokleng vão seguir lutando pelos seus direitos, pelo cumprimento das leis, embora saiba que para o governo seria bom o índio não ter história nenhuma. “Eles gostariam de ter uma borracha gigante que apagasse tudo, mas não vai ser assim. Em 2014 serão os 100 anos do contato. Que vamos fazer, festa ou o quê?”

Livai Paté, que é representante dos Xokleng no Conselho de Saúde, diz que não gosta de lamentar o passado, mas que sempre é bom lembrar para que as coisas não aconteçam de novo. “Nós também queremos viver, ter nosso direito, nossas terras, educação, saúde. E há que respeitar nossa forma de viver, de praticar a medicina. Essas terras eram nossas, e agora temos de ficar confinados em lugares ruins. A terra onde estamos é uma pirambeira, as melhores foram tiradas de nós. A gente não pode aceitar”.

Vomble Paté é representante da área de Palmeira e reclama da falta de interesse por parte das pessoas brancas, com relação aos problemas indígenas. “De cada 10, dois se interessam. A gente vem aqui na universidade e não aparece estudante. Mas nós queremos dizer a nossa versão da história. Esse Eduardo (Hoerhan, o pacificador) não significa nada pra nós. Ele matou um companheiro que foi buscar nosso direito. E essa matança continua. Antes eles matavam com arma de fogo, agora matam com a caneta”.

A vida em movimento
Enoke Popó é cacique na aldeia Figueira. Ele conta que os Xokleng se dividiam em vários grupos e tinham como modo de vida a coleta e a caminhada pelo território. O pinhão era o alimento principal. Durante a época da colheita eles juntavam tudo o que dava, para poder durar até a próxima. Depois, coziam e armazenavam embaixo da terra, enrolado em folhas, o que garantia a sua perenidade. O local mais abundante era a Serra da Abelha, onde é hoje o município de Vítor Meireles. “Os mais velhos sempre sabiam onde era o melhor lugar pra acampar. A gente circulava por um território de mais de 34 mil hectares e agora estamos confinados num espaço de 14 mil. Hoje estamos aí na luta para ampliar esse território. O branco fala que a gente não precisa disso tudo. Mas essa terra é nossa. É um direito nosso e queremos manter”.

Enoke lembra que não foi fácil para o Xokleng sair da vida nômade para a sedentária, como também foi difícil aprender a arte da agricultura. E quando eles conseguem, vem o governo e tira a terra, como foi na época da construção da barragem. As melhores foram alagadas e eles tiveram de ir para as regiões de rocha. Não é sem razão que eles procurem se manter mais com o artesanato do que com o plantio de alimentos. Sem a tradição ancestral e sem terras, fica quase impossível virar agricultor. Já a coleta do pinhão também é cada vez menor porque a região está tomada pelo pinus, sendo a araucária um ente em extinção.

“A gente tem de viver dependendo do governo e este ano eles mandaram apenas uma cesta básica por família. Uma, de 26 kg de alimento. E o resto do ano? Como faz? É por isso que os jovens estão saindo, vão trabalhar de empregado nas fazendas, na cidade, e aí perdem o costume”.

Sobre a religiosidade Enoke conta que quase todo o povo Xokleng é evangélico. E Silvio Coelho mostra, no seu livro sobre os Xokleng, como esta igreja acabou sendo responsável pela retirada de muitos dos indígenas do vício do álcool que havia sido contrabandeado para as aldeias para que o branco melhor dominasse. Por outro lado, as velhas tradições, uma vez que não são mais vividas, acabam se perdendo da memória. “A gente conta para as crianças dos deuses antigos, da chuva, do trovão, do relâmpago. O povo antigo se amparava nas forças da natureza. Mas é só uma lembrança que a gente passa no dia do índio. Sobrevivem alguns rituais que a gente faz nos casamento e batismos. Alguma coisa fica. Agora, a língua não. A língua a gente preserva”.

Os Xokleng vivem na região de Ibirama, em Santa Catarina, numa terra de 14 mil quilômetros quadrados. São 18 aldeias que perfazem o território La Klãnõ, com 88 famílias e duas mil almas. Cada área tem um cacique que é eleito pelos membros da aldeia e cumpre um mandato de três anos. “É bom, porque a gente fica perto. Se o cacique não cumpre o que prometeu, o povo cobra na hora”.

Sobre os movimentos de povos originários na América Latina os Xokleng sabem muito pouco. Os brancos que convivem com eles não levam estas informações. “Só no Brasil são 250 povos, com línguas diferentes. A gente tinha de ter uma língua índia pra se comunicar, talvez aí a gente pudesse entender as outras lutas. Nós, aqui, planejamos nossa idéia na nossa língua, mas depois temos de falar em português. Isso é ruim”.

E assim segue este povo que ainda não consegue se sentir em casa, apesar de estar no seu território. Sem terra boa, sem araucária, sem pinhão, sem os direitos básicos respeitados eles fazem o que sempre fizeram: lutam. Pode ser devagar, pode ser isolado, pode ser difícil. Mas é como eles sabem fazer. O povo caminhante do sol conseguiu vencer os bugreiros, a invasão, o medo, a dor. Saíram de 120 almas em 1920 para os dois mil que são hoje. Parece pouco, mas não é. Não para uma gente que já sofreu tanto e que vive abandonada na “Europa do sul”. Mas, naquele silencioso jeito de ser, eles vão gestando o amanhã esperado. Que ninguém se engane, o valente povo Xokleng, que dominou as florestas de Santa Catarina, segue em pé, e avança!...

2009 - O povo Mapuche segue em luta

06.11.2009 Pouca gente sabe, mas existe um povo que nunca foi conquistado pelos espanhóis aqui na América Latina. Com a chegada dos brancos europeus, civilizações complexas foram dizimadas, estados foram destruídos, nacionalidades extintas. Mas, o povo que habitava as margens dos rios Biobío e Toltén, no que é hoje o sul do Chile, nunca se deixou vencer, nem mesmo pelos incas que, antes da dominação espanhola, também chegaram a conformar o império do Tawantinsuyo.

Ao longo de 300 anos de invasão européia, este povo guerreiro enfrentou com valentia e audácia a fúria dos espanhóis até ser reconhecido como um estado autônomo dentro do imenso território conquistado. São os Mapuche, palavra que designa “gente da terra”, na língua mapudungun. Nestes séculos todos em que reinaram Espanha e Portugal aqui por estas terras, os mapuche resistiram altivamente a qualquer investida, chegando a usar, com sucesso, táticas de espionagem bastante eficazes. Além disso, incorporaram as novidades das forças produtivas inimigas para fortalecer a sua defesa.

Pois esta gente única, hoje segue em pé de guerra, agora contra o estado chileno que tem atuado como opressor e também contra as transnacionais que invadem seu território. Nunca vencidos, os mapuche enfrentam com a mesma dignidade ancestral, os novos desafios que se apresentam. Saber da sua história é o primeiro passo para compreender suas demandas político/econômico/culturais e adentrar pelas intricadas trilhas de Abya Yala (nome dado pelos originários ao que os brancos chamam de América Latina).

Luan-Taru – o grande herói mapuche
Assim que desembarcaram na parte leste do que hoje é América do Sul os espanhóis iniciaram suas guerras de conquista e destruição, derrotando primeiramente os incas. A região mapuche, mais ao sul, logo passou a ser também espaço da cobiça. Muitas foram as batalhas entre eles e os invasores. Numa dessas escaramuças, em 1546, um menino mapuche, filho do lonko (guia do povo) local, foi capturado pelas tropas inimigas. Seu nome era Luan-Taro, de luan (guanaco) e de taro (conhecida ave de rapina da região), que na língua mapundungun queria dizer “veloz”. Ele tinha pouco mais de 11 anos e foi levado para servir ao comandante Pedro Valdívia. Durante muito tempo participou das batalhas, cuidou dos cavalos, fez-se ginete e aprendeu táticas militares. Por não saber pronunciar direito seu nome os espanhóis o chamaram Lautaro. Seus olhos escuros observavam todas as atrocidades que as tropas de Valdívia cometiam contra seu povo. Ele se fazia mudo e aprendia mais e mais.

No ano de 1552 Luan-Taru montou num cavalo e deu de rédea pelo campo afora. Os espanhóis não fizeram caso, era só mais uma fuga de “índio”. Só que este não iria apenas escapulir e sumir da vista dos espanhóis. Ele imediatamente se apresentou diante dos chefes mapuche e ofereceu-se para ensiná-los a lutar. Mostrou o cavalo – até então desconhecido pelos originários – ensinou a montar e a tal ponto que os mapuche tornaram este animal quase como uma parte do seu ser. Usaram a vantagem do inimigo a seu favor, transformando-se em centauros, quase invencíveis sobre o cavalo. Luan-taru ainda os ensinava a lutar em campo aberto, introduzia novas armas, mostrava as técnicas de guerra aprendidas com os espanhóis e usava cada uma delas para enfrentá-los em pé de igualdade. Tamanha foi a liderança deste jovem mapuche que em pouco tempo era escolhido como o Toqui (chefe máximo na guerra).

Tornado líder das batalhas, Luan-taru ensinou a técnica do batalhão, da retirada estratégica e ainda criou um eficaz sistema de espionagem que envolvia crianças, velhos e mulheres. Eles eram introduzidos no contexto espanhol como traidores do povo mapuche, loucos, bêbados ou servos e, fingindo não entender o idioma, arrebanhavam informações importantes que eram repassadas por um também engenhoso sistema de sinais enviado através dos ramos das árvores. Foi por conta da sabedoria militar de Luan-taru que o próprio Valdívia caiu prisioneiro dos mapuche pouco tempo depois. Sob a liderança do jovem Toqui, os mapuche enfrentaram por anos, sem fraquejar, as tropas espanholas. A palavra de ordem que movia as gentes era o seu grito de guerra: “Adiante, mapuches, vamos tomar Madrid”. Ele não chegou a Madrid, mas tampouco foi vencido em batalha. Sua morte se deu num acampamento perto do Rio Maule. Luan-taru descansava nos braços da sua mulher, Guacolda, numa tenda de campanha. Emboscado por uma pequena tropa liderada por Francisco de Villagra, ele foi surpreendido e transpassado por uma lança, no ano de 1557.

O jovem Toqui encantou, mas a luta mapuche não acabou. Como um verdadeiro mestre ele havia ensinado seu povo, e a resistência seguiu pelos 300 anos afora.Os mapuche e o estado chilenoA luta do povo Mapuche não foi em vão. Diante de um continente dominado, a Espanha obrigou-se a aceitar a autonomia desta nacionalidade, sendo traçadas, inclusive, fronteiras territoriais bem claras. O “wall mapu”, território e também espaço sagrado dos mapuche, permaneceu intacto até que chegaram as guerras de independência. Durante este processo os mapuche foram, por várias vezes, mostrados como exemplo, inclusive por Bernardo O´Higgins, um dos grandes heróis da independência do Chile, que falava fluentemente o mapudungun. Mas, com o passar do tempo, e já sem a presença de O´Higgins, a nação mapuche teve de enfrentar a saga capitalista que começava a se expressar nos estados-nacionais criados pós independência. Depois de uma década de conflitos, estabelece-se o conservadorismo no Chile, e os ideais de Bolívar são esquecidos.

Descobre-se a riqueza do cobre e do trigo. Em 1861 o liberalismo se instala e duas décadas depois havia “modernizado” o país a partir da exploração do cobre e do salitre. Neste período inicia-se uma campanha agressiva de “nacionalização” do Chile, e a proposta era a de incluir todas as diferenças no conceito único de “chileno”, daí o processo que ficou conhecido como “pacificação da Araucanía”, região onde viviam quase duzentos mil mapuche.Este foi um período conturbado, com inclusive a presença de um francês na área do Arauco, que havia se autoproclamado rei. Aquele era, portanto, um espaço conflagrado e o governo decidiu iniciar um trabalho de colonização, criando cidades, abrindo estradas, levando escolas e hospitais. Mas, neste movimento, a república chilena jamais reconheceu os mapuches como um povo autônomo, que tinha sua própria cosmovisão e sua forma original de organizar a vida. Considerava-os “araucanos”, simples moradores daquele espaço de terra e acreditava que todos deveriam se unificar sob a mesma bandeira. Não houve conversa nem respeito.

Neste meio tempo, em 1879 o Chile trava com a Bolívia a Guerra do Pacífico, por conta das minas de salitre. O ouro branco era responsável por quase 75% dos ingressos financeiros do país. . Não bastasse isso, se registrou a existência de ouro nas terras do sul, o que tornou ainda mais aguda a ocupação do território mapuche. Assim, a chamada pacificação acabou sendo uma guerra suja e significou justamente a invasão do “wall mapu” por hordas de aventureiros e de colonos enviados pelo governo que tomavam terra, gado e expulsavam violentamente as famílias. Então, aproveitando que o exército nacional estava envolvido na guerra do pacífico, os mapuche se levantaram em rebelião.

Mas, com o fim da guerra com a Bolívia, o exército voltou seus olhos para a região mapuche e recomeçou a ocupação. Durante muito tempo o povo resistiu, mas no ano de 1881 os mapuche foram finalmente vencidos e incorporados à república chilena, perdendo o estatuto de comunidade autônoma. A partir daí os originários foram colocados em “reduções”, e suas terras ancestrais passaram para as mãos dos colonos brancos enviados para “civilizar” um espaço territorial que desde os tempos imemoriais estivera sob o domínio do povo mapuche. Este mesmo processo de colonização também foi encaminhado no lado argentino, para onde se estendia o wall pamu.

A resistência mapuche
Desde a derrota diante do exército chileno em 1881, os mapuche seguiram resistindo na intenção de recuperar seu território, porque para este povo, o território não é apenas a terra. Ele significa uma unidade física e cosmológica, onde coabitam seres humanos, bichos, matas, rios, deuses, enfim, é muito mais do que a idéia de propriedade privada imposta pelo capitalismo. No vídeo “El despojo”, fala um mapuche: “Os deuses habitam esse lugar, e nós nos sentimos protegidos pela paisagem. O território não é só terra, é herança cultural. Da terra vem a araucária, que nos foi dada por deus, dela vem o pinhão que recolhemos e que nos permite viver. É nossa riqueza”. Há uma relação profunda entre a vida mapuche e os deuses que habitam o wall mapu. “Eles se comunicam através do sonho e assim nós sabemos se o verão vai ser bom se a colheita será farta, se o inverno vem rigoroso”.

Sem wall mapu os mapuche perdem essa ligação. Um pouco da compreensão desta realidade foi conseguida durante o governo de Salvador Allende, que iniciou um processo de Reforma Agrária no qual respeitava a lógica mapuche de organização da vida, fincada na comunidade. Mas, a ditadura militar chilena, que inicia em 1974, com o golpe liderado por Augusto Pinochet, promove mais uma divisão das terras comunitárias que se havia conseguido ao longo dos anos de luta. Não bastasse isso, a região da Araucanía, a exemplo do que passou a acontecer também no sul do Brasil, se transforma em espaço da plantação do pinus, matando as araucárias. E as personagens nefastas que vão tomando conta da terra mapuche são as transnacionais do campo do reflorestamento. Heresia pura. A terra que dá o pinhão, a unidade sagrada, é rompida em nome do lucro e da “plantation”.

Em resposta a essa política da ditadura a luta mapuche se organiza de forma mais orgânica e começam os movimentos pela recuperação do território e pela auto-determinação que eles lograram manter ao longo de mais de 300 anos, em pleno domínio espanhol. Nos anos 90, com a instituição do Aukin Wallpamu Ngulam (Conselho de Todas as Terras – espaço de organização e governo do povo mapuche) esta nacionalidade inaugura nova onda de mobilização com a ocupação das empresas transnacionais de reflorestamento e de energia, incêndio das plantações, passeatas, ocupações de prédios públicos. Uma reação radical que os coloca hoje sob a Lei de Segurança Nacional e os denomina “terroristas”. O estado chileno, sob o comando de uma ex-ativista de esquerda, sequer deu fim a esta lei arbitrária da ditadura de Pinochet. Os militantes mapuche, quando presos em algumas destas ações que visam a recuperação e a proteção do seu território, são presos como bandidos e ainda está longe de o estado chileno compreender a dimensão do que seja a nacionalidade mapuche e o que significa para esse povo manter seu espaço original.

A luta hoje

Conforme conta o professor de história e militante da causa mapuche, Bóris Ramírez, a luta hoje está amparada em três grandes eixos: recuperação do território ancestral, autodeterminação e fim da discriminação pelo Estado. E o que se vê no sul do Chile é um enfrentamento entre o estado e o povo, num contexto de completa militarização da região da Araucanía e criminalização do movimento, no qual os mapuche em luta são presos, torturados ou assassinados sob a denominação de “terroristas”. É a completa inversão da história. Aqueles que são os donos da terra – que foram roubados e espoliados – são os que agora se tornam os vilões por quererem de volta o que sempre lhes pertenceu. Mas, no Chile, o racismo é uma doença endêmica e só agora, com as lutas do povo mapuche avançando para dentro das cidades, onde estão muitos dos membros desta nacionalidade, é que este tema começa a ser desvelado.

Desde os tempos da chamada “pacificação” os winka (os brancos) consideram que é legítimo colonizar as terras dos “índios”, porque, afinal, para eles, aquele povo que se manteve autônomo por tanto tempo nesta América dominada, não deve nem ser humano. “O racismo é uma coisa bem séria no Chile. Custa muito reconhecer a mestiçagem, e há muita discriminação contra peruanos e equatorianos. É uma contradição porque na escola se usa muito a história dos mapuche como um povo guerreiro que resistiu ao império espanhol, mas, por outro lado, essa imagem fica só no passado. Hoje, os mapuche são apontados como bêbados, vadios e sequer são reconhecidos como cidadãos chilenos, uma vez que qualquer ação deles não é julgada pela lei ordinária, e sim pela Lei de Segurança Nacional”, conta Bóris.

Outra contradição é que o governo finalmente assinou o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que define os direitos dos povos originários e de outros grupos que se constituem uma identidade própria, como os quilombolas, mas apesar disso segue tratando os mapuche como bandidos. “Seria necessário uma redefinição constitucional para que esta questão se resolvesse pelo menos do ponto de vista do direito. Porque a Constituição chilena não os reconhece como um povo originário, que tem direito a autodeterminação”.

Reconhecidos ou não pelo governo chileno, para os mapuche a luta segue. E, hoje, o que era uma batalha dentro das fronteiras do estado-nação, já tomou outras dimensões. Os principais embates da nacionalidade mapuche são contra as grandes empresas florestais e a as hidrelétricas, a maioria propriedade de empresas estrangeiras, uma vez que no Chile, o processo neoliberal foi levado às últimas consequências. Então, a luta assume proporções gigantescas porque o enfrentamento é com o próprio capital, que se expressa ali na região através destas empresas cujos donos estão em lugares não sabidos. Não é sem razão que, praticamente todos os dias, tenha algum mapuche sendo preso ou assassinado. É a razão da força se impondo tal qual nos tempos coloniais.

As relações com os demais movimentos sociaisA luta dos mapuche até bem pouco tempo era uma coisa meio fechada, resolvida entre eles. Pudera, fica difícil confiar nos winka (brancos). A própria esquerda também tem visões muito diferenciadas sobre a questão indígena. Há quem defenda a integração, outros a “guetização”, o que torna o diálogo bem mais difícil. O novo movimento originário que se expressa em Abya Yala com mais vigor desde o final dos anos 80 não quer mais este paternalismo fingido que vigorou por décadas nos países, com os originários sendo tutelados em reservas, e também não querem essa proposta de “branqueamento” que se expressa na idéia de “integração”. Os originários querem o direito de viver nas suas terras, de acordo com sua cultura e seguindo outras formas de organização da vida. Daí a proposta dos estados plurinacionais, que em nada quer dizer separatismo como querem fazer crer os racistas que não aceitam a idéia de que um povo possa ter mantido ao longo de todos estes anos sua identidade originária.

No Chile, hoje, os mapuche já conseguiram sair de suas fronteiras e estabelecer parcerias políticas. Vários movimentos sociais apóiam a luta originária e nos episódios de prisão ou assassinato, se manifestam, dão suporte e denunciam internacionalmente. Além disso, participam ativamente das marchas e protestos que o povo mapuche organiza para se fazer visível a um país que insiste em não reconhecê-lo. Mas, segundo Ramírez, esta parte da esquerda organizada ainda é muito pequena no Chile, embora contribua muito ao levar a discussão para o reduto winka.

A organização dos mapuche avança agora no rumo da Argentina, o que torna o assunto ainda mais complexo, por sair das fronteiras do estado-nacional. É que a região de Neuquén, no país vizinho, faz parte do território ancestral, o wall mapu, e os mapuche que ali vivem igualmente se sentem parte da mesma nacionalidade. Não é à toa que esta aproximação seja vista como um “perigo” pelos governantes dos dois países, incapazes de compreender a nova configuração do mundo abyayálico. Os povos originários não entendem o mundo como um espaço esquadrinhado artificialmente pelo povo conquistador.

Eles vivenciam seu território como espaço unitário de corpo/terra/espírito/deuses. As fronteiras são outras. E a proposta de autodeterminação é a única possível para estas nacionalidades que se encontram firmemente organizadas num tronco comum de cultura. Eles não buscam se separar do estado-nação onde estão fincados, mas exigem que este estado os reconheça como nacionalidade autônoma, capaz de gerir seus destinos e também de atuar em sintonia com os interesses de todo o povo chileno e argentino. Entender isso é dar um passo para o futuro. A América Latina não pode mais ser a mesma que foi fundada hegemonicamente pelos criollos com as guerras de independência. Assim como muitos estados-nação estão refundando suas repúblicas, tais como a Venezuela, o Equador e a Bolívia, também o continente precisa se refazer. Abya Yala reclama seu lugar. E o povo mapuche está fazendo sua parte nesta nova conformação. Das entranhas da Araucanía ouve-se o grito mapuche de Luan-taru e todos os outros heróis tombados: pulchetun... pulchetun... Esta palavra, na língua dos “hombres de la tierra”, quer dizer: faça deslizar a flecha mensageira. E lá vai ela, rasgando as fronteiras, constituindo a terra do esplendor.

2009 - A palavra originária no Equador

08.10.2009 - Desde o ginásio Rumiñahui até a sede da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) são uns 15 minutos de ônibus. Toma-se o Ecovia que segue pela avenida Seis de Dezembro afora até o final, um caminho longuíssimo. Os ônibus são articulados e rápidos já que seguem por um corredor exclusivo. A passagem é 0,25 centavos de dólar. Além do que é domingo e o tráfego quitenho está um paraíso. Durante a semana quase não se pode andar pela cidade, por conta do número de carros circulando. Dizem que são mais de 500 mil automóveis e deve ser verdade, já que, apesar das largas avenidas, os engarrafamentos são uma constante.
Dentro do ônibus segue o povo, que é igual em qualquer parto do mundo. Carros lotados, gente apertada, numa cidade de dois milhões de almas. Uma mulher com uma criança no colo é completamente ignorada pelos que estão sentados e “la nave vá”. É domingo em Quito e os funcionários do hotel recomendam que não se ande sozinha pelas ruas. “Há muitos marginais”. De novo, tudo como em qualquer outro lugar do mundo. Verdades e preconceitos. Na parada recomendada desço e fico um pouco perdida. Não há viva alma na rua. Ando um pouco e logo vejo ao longe algumas mulheres, tipicamente quitenhas, com suas roupas originárias. Decido segui-las. Aperto o passo e as abordo. “Por favor, onde fica a Conaie?” Elas param e me olham desconfiadas. “Da parte de quem?” Começo a ladainha de que sou jornalista brasileira e quero conversar com o pessoal sobre o que está acontecendo na luta contra a Lei de Águas. “Conhece o MST?” Uff, estou achada. “Sim, claro”. E passo a narrar as lutas do sem-terra no Brasil. As mulheres, já mais tranqüilas, se desarmam. “Venha. Estamos indo para lá”.
A mítica Conaie, que reúne sob sua direção mais de três milhões de originários no Equador, é um prédio antigo pintado de um rosa desbotado, com um grande portão de ferro. Não há placa nem indicação de que ali está uma das mais importantes entidades do movimento originário da América Latina. Lá dentro estão dirigentes indígenas de todos os cantos do país, da serra, da costa e da Amazônia. Vieram para uma reunião na qual decidirão sobre o encontro com o presidente Rafael Correa. Mulheres e homens aguçam o olhar quando passo portão adentro. Uma rápida conversa, algumas explicações e logo se abrem todas as portas. “Vamos realizar uma reunião interna. Há muitas coisas que resolver”. Boa parte da direção da Conaie e da Ecuarunari estivera em Puyo, na área amazônica, onde se deram conflitos entre os moradores da etnia Shuar e a polícia, no dia 02 de outubro, por conta da luta dos originários contra a lei de água. Os dirigentes tinham ido para um encontro envolvendo todas as comunidades ligadas a entidade. “É que é nossa prática ouvir todo mundo antes de tomar qualquer decisão”. Um jeito muito indígena de organizar a vida.

A luta no Equador

Andando pelas ruas de Quito fica indisfarçável a cara originária da cidade e se entramos país adentro isso se torna mais forte. “Somos 45% da população”, diz Gonzalo Guzmán, da Ecuarunari. Mas, segundo ele, muitos indígenas preferem negar sua raiz. “Se for ver o censo vão dizer que somos só uns 20%, mas não é verdade. Basta andar pelas ruas e pronto, já se vê”. E assim é. Por outro lado, a questão indígena aparece como uma ondulação incomodativa na vida cotidiana. Na primeira semana de outubro, quando uma movimentação na região amazônica acabou em conflito entre polícia e indígenas, com um saldo de um morto (Basco Wizuma, da etnia Shuar) e 40 feridos, não era outro senão este assunto a tomar contas das rodas de conversa nas universidades, nos bares, na rua. “Correa está sendo um bom presidente, mas ele não conhece o povo originário. Tem muito que avançar nesta parte”, fala Lucho, um taxista de pouco mais de 30 anos, formado em Química. “O que passa é que nos vêem como índios, tudo igual, e não é assim. O povo da costa é diferente do povo da região amazônica ou da serra. Se os políticos não entendem isso, é seguro que se equivocam”.

Nada podia ser mais verdadeiro. O conflito se deu na região amazônica, envolvendo basicamente a etnia Shuar, uma nação de longa tradição guerreira. Naquela terça-feira do dois de outubro, eles decidiram fechar a ponte sobre o rio Upano que interliga toda a província de Morona Santiago, na amazônia equatoriana. Ações desta natureza, os famosos “paros”, são comuns no Equador, por isso não havia maiores preocupações, afinal, as manifestações seriam pacífica. Os originários estavam em luta contra Lei de Águas que segue em discussão no país. Dizem eles que da maneira como está redigida abre brechas para a privatização e isso vai contra os princípios constitucionais. Esperava-se então que as paralisações seguissem sem maiores problemas. Mas, a governadora da província, Sonia Ortega, decidiu enviar uma guarnição policial. Eram mais de 100. Para os Shuar, aquilo apareceu como uma provocação à guerra e daí para o confronto foi um estalo. Indignados com o operativo, os Shuar partiram para a defesa de suas posições. Nas mãos levavam seus tacapes e espingardas de chumbo, usadas comumente para a caca, visto que são um povo caçador. Nada de “armas” como dizia a imprensa no dia seguinte. Apenas seus instrumentos de trabalho. Confrontados pela força desproporcional, reagiram. O resultado foi um professor de 45 anos morto e 40 feridos, entre eles muitos policiais.
A grande imprensa equatoriana não difere em nada da grande imprensa de qualquer país capitalista. Com tremendo alarde, as manchetes apontavam para os conflitos, culpando os indígenas, obviamente, pelos fatos acontecidos. As fotos gigantes mostravam os rostos originários pintados de negro e em expressões ferozes. A mensagem subliminar aparecia bem clara. De novo, a barbárie indígena se sobrepondo aos interesses do país. O presidente Correa foi à televisão no final do dia lamentar os fatos e chamar para o diálogo. Também repetia velhas fórmulas de esperar a catástrofe para comportar-se como estadista. É que os movimentos originários estavam há tempos discutindo que a lei tinha problemas e que havia que dialogar. Mas, foi preciso um morto para que as portas se abrissem.

Água: expressão do sagrado
Entre alguns grupos de intelectuais críticos, ligados a universidade, a opinião era de que Correa havia dado uma “pateada”, ao fazer declarações na imprensa dizendo que as manifestações eram inúteis e que a Conaie não tinha representatividade. Não mostrou tato. Tivesse agido de maneira menos prepotente, os protestos não precisariam acontecer. A lei é ainda apenas uma proposta, o que significa que é possível fazer mudanças. “O melhor era ter recebido os indígenas e escutados suas reivindicações. O movimento estava em descenso, e agora tomou corpo, vida, a ponto, inclusive, de os índios indicarem onde e quando vão falar com o presidente. Isso só fortalece o movimento”, diz Manuel Salgado, professor da Universidade Central do Equador.
Nas ruas, a reflexão é igual. Verônica, uma vendedora de flores da Plaza Mayor conta que é da etnia kichua, que gosta muito do presidente, mas que nessa questão ele se equivocou. “Devia ter escutado os índios antes. Nós só queremos defender a natureza”. E aí reside toda a problemática. Para as comunidades originárias a natureza não é uma coisa que deve ser preservada para que sirva ao turismo ou qualquer coisa assim. A natureza é parte de sua própria identidade. Assim, fazer algum dano a natureza é como cortar a própria carne. Por isso estão em alerta. A nova lei de água apresenta sutis brechas que podem conduzir a privatização e, para eles, a água não pode nunca servir como algo a ser comerciado. Assim, embora o governo diga que a constituição não permita a privatização, a lei explicita, no artigo 14, que a gestão da água pode ser pública, privada ou comunitária. Então, o que significa a palavra “privada” aí metida? Esta é uma questão que os originários querem esclarecer.
Neste contexto é muito importante que os tecnocratas que elaboram leis saibam que água tem uma significação extremamente importante, principalmente para a cultura Shuar, tanto que são chamados de povo das cascatas, porque é ali, nas quedas de água onde cultuam seus deuses, fazem seus ritos e cumprem seus rituais. Assim, para eles, ferir a água é destruir o próprio povo. Além disso, sendo a água o espaço do sagrado, morada de Arutam, o deus supremo, tampouco pode converter-se em bem privado. É também da água que saem Shakaim, para ensinar as várias formas de trabalho, Tsunki, que entrega poder de cura aos xamãs, Uwi, que renova as frutas e animais e Etsa que auxilia na caça aos animais. Assim, compreendendo a cosmovisão Shuar, fica muito mais fácil entender porque a água é uma questão inegociável. Se, num estado que se auto-intitula plurinacional (o que significa respeitar a cultura, a organização e a gestão dos territórios ocupados pelos povos originários), esta questão não é levada em conta, fica muito difícil acreditar que as mudanças possam mesmo acontecer.
Outro problema que a lei pode trazer para as comunidades originárias é a parte que tem relação com a mineração. Seguir explorando minérios de forma extensiva nas terras comunais é colocar em risco a mãe terra e, igual, toda a vida que ali vive, inclusive chegando a contaminar a água, a qual já vimos que é fundamental para os povos. Os técnicos do governo dizem que, hoje, já existem técnicas avançadas de mineração que não contaminam a natureza, mas os indígenas não tem qualquer razão para acreditar nisso, afinal são mais de cinco séculos de enganação. Além do mais, sabe-se que muito nas terras amazônicas podem ter muito ouro, o que atiça a cobiça de muita gente. E cobiça é algo muito destruidor, basta pensar no que foi a conquista. Nesse sentido, para se fazer confiar, o governo de Correia precisaria avançar muito na compreensão de quem são os povos originários e sob qual cosmovisão vivem. “Existem muitos consensos entre nós e a proposta do socialismo do século XXI, mas em uma coisa nos diferenciamos radicalmente. Eles seguem apostando num modelo de desenvolvimento que esgota os recursos naturais. Nós não aceitamos isso. Há que avançar para um modelo que leve em conta a natureza”.
Gonzalo Guzmán, Diretor de Recursos Hídricos da Ecuarunari, afirma que as comunidades não estão fechadas ao diálogo com o governo, muito pelo contrário. Para os povos originários, quanto mais se puder avançar nas conversações, melhor. Afinal, por mais guerreiros que possam ser, não lhes é agradável entrar em conflito, como igual não é bom para ninguém. Assim que agora discutem como realizar este diálogo e em que bases. “Não queremos desestabilizar governos, nada disso. Sabemos que há avanços significativos no Equador, mas queremos ser ouvidos. Dizem que somos manipulados pelos políticos, mas isso só mostra o desconhecimento da nossa causa, que não é de hoje”.

No Equador, as comunidades originárias estão organizadas em comunas. Elas são o centro da vida e é ali que tudo é decidido. São, ao todo, 3.700. Nenhuma decisão é tomada sem que toda a gente seja ouvida, por isso tudo é bem demorado. Logo depois do conflito que vitimou um professor Shuar, as comunas passaram dois dias a discutir e deliberar. Enquanto isso, outros grupos seguiam trancando estradas, pois a palavra esmorecer não consta no dicionário dos originários. Só no domingo, depois de ouvidas as comunidades, as lideranças voltaram para a capital onde decidiram como iria ser a conversa com o presidente. Para eles, é fundamental que o governo trabalhe a partir de quatro pontos fundamentais: 1) que as províncias de Pastaza e Morona sejam declaradas ecologicamente responsáveis e, por conseguinte, que cesse a exploração mineira e petrolífera; 2) que se potencialize a educação bilíngüe, 3) que se entregue às comunidades o título de propriedade dos territórios que ocupam e 4) que os projetos de desenvolvimento na região amazônica sejam administrados pela Federação Shuar.

O diálogo com o presidente

A segunda-feira começou tensa em Quito. Era dia de conversa. No palácio presidencial, uma grande mesa foi preparada para receber as lideranças das comunidades das três grandes regiões do Equador. Os 130 delegados entraram e outros dois mil ficaram no lado de fora, fazendo pressão. O presidente da Conaie, Marlon Santi, foi duro e exigiu respeito aos povos originários. “Não aceitaremos que nos chamem de loucos ou que digam que nossas manifestações sejam inúteis”. E Rafael Correa rebateu: “Quem foi o estúpido que disse isso?” Ao que Santi esclareceu, olhando firme nos olhos do mandatário: “O senhor mesmo, presidente!” Ouviram-se risos e Correa fechou a cara. Outro momento de tensão ocorreu quando o presidente passou a interromper a fala de Humberto Cholango, da Ecuarunari. “O senhor escute, presidente, que quando o senhor falar nós escutaremos com atenção”. Ninguém ali estava para brincadeira. Passada a tensão, governo e entidades começaram a discutir a pauta. Os originários levaram 25 pontos de debate, inclusive alertando ao presidente sobre alguns de seus assessores, apontados como “neoliberais”, os quais nominaram.

Foram seis horas de um tenso diálogo que terminou com o consenso sobre seis pontos. 1) Impulsionar os princípios constitucionais que legalizem o Estado Plurinacional e intercultural; 2) que o diálogo entre originários e governo se dê em comissões com gente que tenha capacidade de mando; 3) se fomentará a educação bilíngüe e as autoridades serão eleitas; 4) haverá uma comissão mista para discutir mudanças na Lei de Água; 5) haverá uma comissão mista para investigar a morte de Bosco Wizuma; 6) haverá uma comissão mista para revisar a Lei sobre a Mineração.

As lideranças indígenas decidiram dar um voto de confiança ao governo de Rafael Correa e saíram com o propósito de suspender os levantamentos. Mas esta não é uma questão que tenha terminado. O tema indígena no Equador não é fácil de ser resolvido. Como em toda América Latina, o racismo é ainda muito grande e há receios de traição por parte dos brancos, coisa bastante comum quando se iniciam negociações. A história mostra claramente que sempre que os originários decidiram unir-se aos brancos, acabaram traídos. Por isso, os diálogos sempre se dão num clima tenso.

Já o movimento dos povos originários também está matizado com muitas correntes de pensamento, algumas sobre as quais a direita avança. Há os comunistas, os socialistas, os da esquerda cristã. Algumas tendências são inclusive acusadas de “racistas” por dirigentes e intelectuais brancos e cholos (mestiços). Ao que Guzmán, da Ecuarunari, rebate com energia: “Racistas são os brancos que tentam nos manter submetidos desde há quinhentos anos. Quem diz uma coisa dessas mostra não ter a capacidade de nos conhecer”.
O futuro

O fato é que as entidades mais etnicistas da luta originária tampouco descartam as propostas socialistas, até porque este tipo de forma de organizar a vida é muito parecido com sua organização ancestral. O poder está sempre na comunidade e na organização territorial. É ali, na comuna, que a vida se decide de forma participativa. Então, para eles, a questão política parece estar clara. O que ainda precisa avançar é o conhecimento dos brancos sobre sua cultura e cosmovisão. E, se a direita tem se incrustado neste nicho, abrindo brechas organizativas e políticas, a responsabilidade é de quem? Dos originários ou de uma esquerda que também se apresenta incapaz de compreender a complexidade do mundo originário?

Um exemplo bem claro das diferenças culturais pode-se ver na cidade de Quito. Apesar da grande população originária, a cada dois passos que se dê esbarra-se em uma igreja. São impávidas e espetaculares, representando a cultura invasora. Agora imaginem se a alguém ocorresse entrar numa delas e destruir as imagens dos santos e de Jesus Cristo. Que passaria? Qual seria a reação da sociedade católica? Pois essa é a expressão imagética do que hoje está acontecendo nas entranhas do Equador, provocando esta onda de protestos. Para os originários, contaminar a água com mineração e petróleo, privatizar a água que é um bem social, insistir num modelo de desenvolvimento predador, tem o mesmo significado de se pisar e destruir seus deuses. Para as comunidades indígenas a água é espaço sagrado e não entender isso é não estar inteirado do que seja o novo estado plurinacional. Há, então, que haver por parte do governo e de toda a sociedade a compreensão sobre o significado das coisas nas comunidades originárias. Esse diálogo não pode estar medido unicamente pelas questões econômicas.

Uma coisa boa é que a Assembléia Nacional está formada em sua maioria por gente sensível às questões populares. É inegável que é uma maioria aliada ao governo, mas ao mesmo tempo comprometida com as lutas do povo, daí a possibilidade de serem realizadas mudanças nas leis que forem questionadas pelas gentes, tal e qual fazem os originários agora. É certo que no mosaico originário pode-se perceber a intervenção – por vezes também destruidora – de ONGs estrangeiras, de igrejas protestantes, de políticos de direita. Mas, nas entidades, as lideranças tem isso muito presente e frequentemente debatido. Os interesses que movem a questão indígena no Equador são muito diversos. No meio de toda esta polêmica está o fato de as terras amazônicas serem as mais ricas em petróleo e minerais. Então, o conflito pela gestão destas riquezas é freqüente. O que os originários querem, dentro do conceito de estado plurinacional, é ter o direito de decidir sobre como explorar estas riquezas. “Ninguém quer barrar o desenvolvimento do país e muito menos apresentar teses separatistas, como as da gente de Santa Cruz, Bolívia. Nós só queremos poder decidir a partir da nossa cultura”.

Os conflitos deste novo Equador, hoje caminhando na trilha de mudanças estruturais, se dão sob uma complexidade política, econômica e cultural que precisa ser melhor compreendida. O presidente Correa ainda precisará superar muitos preconceitos, além da sua conhecida arrogância, assim como os originários também haverão de desfazer-se de influências fundamentalistas que vez ou outra permeiam algumas correntes de pensamento. Outro ponto é a discussão efetiva sobre o poder. Como passar da oposição ao poder? Como transformar a crítica em espaços criadores? Tudo isso é uma longa marcha para o futuro que só a gente do Equador saberá dizer onde vai dar. É por isso que nas ruas nervosas da grande Quito, cada herdeiro do mundo originário que caminha ligeiro, escuta, sussurrada no ouvido, a frase histórica de Daquilema Apu, fuzilado em 1872 por lutar contra o governo de Garcia Moreno: Shuya, mana kewaychu, ñuka churi.

“Esperem sem abaterem-se, filhos meus”... E assim é! Esta silenciosa força segue resistindo.

2009 - Santuário dos Pajés em Brasília: espaço de resistênciaPor

18.12.2009 - A cidade de Brasília, cantada em verso e prosa como o espaço de uma das mais importantes obras arquitetônicas nacionais e, também do arrojo e do engenho do presidente Juscelino Kubitschek, tem um passado que muitos querem ver escondido sob o concreto. Aquele lugar, que no ano de 1956 começa a abrigar a nova capital brasileira, era caminho ancestral de diversos povos originários que criaram num ponto específico do território - hoje o Parque Nacional de Brasília - um espaço sagrado. Ali, descansavam e praticavam seus rituais.

No ano de 1958, quando as obras da cidade nova já estavam em pleno vapor e tudo levava a crer que o velho cerrado mudaria para sempre, as gentes das etnias Tapuya, Tuxá, Fulni-ô, Kariri-xocó e Guajajara decidiram ocupar aquele espaço e criar ali o santuário dos pajés, afinal aquele lugar que agora abria passo a um mundo desconhecido já era deles, desde os tempos ancestrais. Premidos pela colonização do início do século XX, os povos foram adentrando as matas, saindo do caminho dos brancos que estabeleciam fazendas e vilas. Muitos foram escravizados e chegaram a abrir com o próprio braço as picadas que levariam as hordas de invasores.

Não foi coisa fácil se manter na terra, bem no meio de Brasília, como se fosse uma chaga viva, sempre sangrando. Mas os povos originários conseguiram garantir que ali se criasse a Reserva do Bananal, lugar de respiro da selva de concreto. Desde 1968 a área está demarcada como lugar sagrado e tem sido preservada e manejada ecológica e espiritualmente pelos indígenas. Ali eles alimentam o espírito e praticam sua mística ancestral.

É da reserva do Bananal, no coração do Brasil, que saem também os gritos de luta da gente originária. Eles denunciam que os Guaranis Kaiwás são perseguidos por fazendeiros em Mato Grosso do Sul, assim como os seus parentes da Raposa Serra do Sol, Ingarikó, Macuxi, Wapixana, Patamona e Taurepang enfrentam garimpeiros, fazendeiros, policiais e militares que usam a lei para justificar o genocídio e a perseguição aos indígenas e a usurpação dos territórios. Dali eles também gritam contra a ação dos policiais que atacam os Sateré-maués em Manaus e denunciam a perseguição que sofrem, ali mesmo, na grande capital.

Agora, banqueiros, empreiteiros e a máquina política de José Roberto Arruda e Paulo Octávio querem especular sobre as terras da reserva. “É terra demais para os índios”, dizem. Mas eles resistem e insistem e permanecer na terra sagrada, cuidando das tradições e da vida. “A máquina do Estado serve a empresas, bancos e partidos para que continuem em nome da lei o negócio de vender a dignidade. Os governos assumem empréstimos com bancos internacionais para alimentar mais ainda a segregação social, fazer cassinos financeiros e especulativos, traficando e desprezando a vida de milhares e a natureza para aquecer o capital e o lucro da ditadura do poder econômico”, diz um manifesto divulgado no Centro de Mídia Independente.

Os indígenas que vivem na Reserva do Bananal insistem em dizer: eles não ocupam a terra, é ela que os ocupa. A relação que eles tem com o espaço geográfico não tem nada a ver com a que tem o branco, com sua propriedade privada, na qual a terra é só uma mercadoria. Então, resistir no Bananal é defender um modo de vida que os brancos até hoje não querem entender.
O pesquisador do IELA, Fernando Correa Prado, esteve na reserva e conversou com uma de suas lideranças, Santxiê Tapuya, que deixou bem claro: o povo tapuya segue vivo porque nunca se amansou. E não vai ser agora!


2009 - Povo Xokleng quer dizer sua palavra

06.12.2009 - Lideranças da Terra La Klãnõ, território Xokleng, estiveram reunidas em Florianópolis discutindo seus problemas e desafios. Os Xokleng vivem na região de Ibirama, Santa Catarina. Veja o vídeo.

2009 - A palavra originária

07.02.2009 - Segunda parte da entrevista com Gonzalo Gusman sobre a questão indígena no Equador.

2009 - A luta contra a lei de água

07.02.2009 - O Equador viveu no mês de fevereiro dias turbulentos, com o levantamento de povos originário em luta contra a prizatização da água. Veja a entrevista com Gonzalo Guzmán, diretor de Recursos Hidricos da Confederação de Povos de Nacionalidade Kichwa do Equador, depois dos conflitos no Ecuador acerca da Lei da Água.

2009 - Caminhando pelo Equador

09.10.2009 - A cidade de Quito é uma belezura. O chamado casco colonial parece sair das páginas de um livro. Não é à toa que foi tombado como patrimônio da humanidade. Tudo está muito bem conservado e a impressão que se tem é de que se está passeando pelas ruas de um longínquo 1800. As igrejas pulam em cada esquina, imensas, descomunais, expressão máxima da dominação. Toda a cultura originária está aplastada. O que assoma é a morada da aristocracia com seus solares, seus pátios internos, suas arcadas.

Muitas das casas hoje se transformaram em pequenos centros de compra e o contraste é inevitável. No meio da cultura colonial o que vende mesmo é o artesanato originário. Ou seja, o produto é a cultura autóctone, mas a arquitetura é a da dominação. Tudo acaba se integrando como o que de fato acontece nesta América mestiça. Nas ruas é a população indígena que aparece com mais vigor, imorrível, apesar de tantos anos de opressão. São originários os vendedores nas ruas, os pequenos comerciantes, a gente que caminha para lá e para cá, num afã febril.

Até mesmo antigos conventos passaram à condição de comércio e muitos chegam ao limite da heresia, o que parece estranho numa cidade tão católica. Contam que as dezenas de igrejas estão sempre lotadas nas missas, mas mesmo assim, fazem-se piadas com as coisas do sagrado. Uma delas diz respeito a um antigo monge, o padre Almeida, que costumava fugir do convento durante a noite para fazer cantorias com sua guitarra. Para sair pela alta janela ele tinha de escalar um crucifixo e pisar na cabeça de Cristo. Diz a lenda que um dia, quando o padre iniciava sua escalada para fora, ao pisar na testa cravejada de espinho de Jesus, ele teria suspirado e dito: Até quando, padre Almeida? E este, assustado, mas não persuadido de ficar no convento, teria respondido: Até a volta, senhor! Pois o lugar deste fato virou restaurante e ali está em destaque a figura do padre a fugir...

Ainda próximo a Praça Maior fica o solar de onde Manuela Saenz atirou uma coroa de flores para Simón Bolívar, quando este entrou na cidade, vitorioso. É uma casa imponente, toda rosa, cheia de janelas. Ali é ponto de peregrinação daqueles que sabem do que foi a força deste amor entre Manuela e Simón. No balcão parece bailar a paixão desesperante que levou aquela pequena mulher quitenha a se transformar na Cabaleresa del Sol, guerreira, indômita, senhora dos exércitos e libertadora do libertador. Seu nome ecoa pela cidade como um mantra e seu retrato está em todos os lugares. Ela, vulcânica, reina, deusa, na Quito das igrejas.

Também pelas estreitas ruas pode-se apreciar os “agachaditos”, que são as comidas callejeras. Tudo o que se vende por ali tem algo de milho, a cultura ancestral. Qualquer coisa é “agachadito”, pode ser uma fritura, um peixe, uma tortilla, uma sopa, um molho de galinha. Diz a lenda que o nome nasceu por conta do hábito de um antigo habitante que se fazia de dândi, metido a rico sem ter tostão. Ele andava pelas festas, vestido com roupas da moda, mas não tinha dinheiro para comer. Então, quando vinha a fome, ele buscava os vendedores de rua e comia seus quitutes. Para não ser visto pelos que o consideravam rico, ele se abaixava. Daí nasceu o “agachadito”. Coisas divinas feitas por mãos populares.

Toda a cidade de Quito pode ser admirada de cima do Panecillo, uma dos montes que cercam a cidade. Este, por ter o formato de um pão é assim chamado: pãozinho. Ao chegar lá em cima outra cena surpreendente desta cidade sem igual. Impávida, domina a paisagem a estátua descomunal de uma virgem, representando a cultura religiosa que é tremendamente opressiva por ali. O curioso é que para mostrar que também respeita a visão dos vencidos, a cidade decidiu colocar sob os pés da virgem imensa, um artefato originário, uma olla, que representa uma espécie de vaso cerimonial das culturas indígenas. Mas, basta uma olhadela para se verificar o quanto aquilo é só um gesto ritual. Enquanto a virgem recebe cuidados e atenção, tendo, inclusive, uma iluminação belíssima, capaz de ser vista de qualquer ponto da cidade, a olla se mantém na escuridão, escondida e abandonada, ruindo sob a ação do tempo.

Do Panecillo também se pode ter uma visão deslumbrante da cidade. Dali, é possível observar como se deu a Batalha de Pichincha, comandada pelo jovem general José Antônio Sucre, em 24 de maio de 1822. Em menor número - ao pé do grande vulcão que leva o nome de Pichincha - mas com uma estratégia genial, o mariscal logrou vencer as tropas realistas e libertar Quito do jugo espanhol. Em pé, no beiral disponível sob a virgem, chega-se a ouvir os gritos da batalha, tamanha é a magia que se desprende na noite quitenha, iluminada como se tivesse milhares de fogueirinhas.

Outro lugar cheio de energia é o mercado de artesanato no bairro de Mariscal. Ali se concentram mulheres e homens que tecem a beleza da cultura originária. Muitos deles vêm da região de Otavalos, onde estão os kichuas. Impossível não se embasbacar com a belezaa das mulheres originárias, com suas saias pretas, blusas bordadas e o indefectível hualca , colar de contas amarelas que representa a riqueza da cultura autóctone. “Isso nos faz ter sempre em conta aquilo que nos dá a vida, o sol, o milho, além de ressaltar a beleza da mulher”, dizem.

De resto, a cidade de Quito é cheias de outros escondidos encantos, como o mercado de Hipiales, onde se concentra o comércio popular. Ali, por entre as barracas, as gentes oferecem sacrifícios ao deus consumo. Isso sem contar os milhares de minúsculos bares e cafés que oferecem o tradicional “seco de chivo”, que parece ser a comida mais pedida por ali. É feita com carne de bode e me pareceu delicioso. Também tem as dezenas de praças, grandes, pequenas, de todo o tipo, onde as gentes descansam sob o sol andino. Nas fraldas dos vulcões se amontoam as casinhas da gente mais empobrecidas. Mas nada que se compare às favelas brasileiras. Talvez por causa do frio rigoroso, todas elas, mesmo as mais simples, são de material. Luis Gavillán, que trabalha como motorista, esclarece que com Rafael Correa as coisas estão melhorando. “Eu votei nele quatro vezes e não me arrependi”.

Outro ponto magnético é a pequena comunidade de Calacalí, a poucos quilômetros da capital. Ali, em meio a casinhas coloridas fica o exato lugar onde uma missão franco-espanhola, em 1736, mediu a metade do mundo, estabelecendo os equinócios e os solstícios. Um pequeno marco estabelece a linha e a pessoa pode ficar com um pé em cada hemisfério da terra. Não sei bem porque, mas algo nos atrai mais ao sul. Creio que é magia!

E assim é uma visão parcial desta cidade pulsante, cheia de contrastes e multicultural. Vigiada pelos vulcões que a circundam, por Sucre, por Manuela. Amada pelas gentes, espaço de disputas. Cidade/país em construção. E, por entre lutas, avanços e desacertos, os equatorianos seguem acreditando que por força de suas livres vontades, a vida vai ficar melhor. “Até hoje todos os presidentes desta república só nos roubaram. Agora, tem problemas, é fato, mas também há avanços incríveis. Nós vamos saber caminhar para um tempo melhor”, diz Luis. “E vamos conquistar outro tipo de desenvolvimento que não este, predador, do mundo neoliberal”, ensina Gonzalo Guzmán, líder indígena. O rosto altaneiro dos grandes caciques dos povos originários do Equador, que estão unidos em assembléia numa praça em frente ao teatro da Universidade Central, parecem concordar. Haverá de estar sendo gestado um novo Equador. Pluricultural, livre.

2008 - A Bolívia vai decidir

17.07.2008 - Eis que em 10 de agosto, um domingo, a Bolívia viverá uma hora histórica, momento inédito, nunca antes vivido. O presidente do país, Evo Morales, o vice, Álvaro Linera, e mais oito “prefectos” (governadores de províncias) estarão submetendo-se à vontade popular outra vez, dentro de um mesmo mandato. São as gentes que vão decidir se eles seguem governando ou não, num referendo revocatório convocado pelo partido do próprio presidente. Para um país que tem registrado na história dezenas e dezenas de golpes, rebeliões, revoltas e ditaduras, esta é uma novidade radical. Assim, aquilo que poderia ser o grande trunfo da direita racista de Santa Cruz, acabou virando-se contra ela. Evo Morales, em meio a uma série de violências e desrespeito à Constituição, preferiu deixar na mão do povo o destino da nação. Uma decisão arriscada, é certo, mas definitiva. São os bolivianos, na sua totalidade, que tomarão nas mãos o seu próprio destino. Pela primeira vez, não será a mesma velha elite branca e agrária quem decidirá por todos. Ou sim?

Uma história de opressão
A história da Bolívia está visceralmente ligada à história da conquista, tal qual a dos demais países deste imenso continente. Com um passado autóctone ancorado em conceitos como a cooperação, a solidariedade e a posse coletiva da terra, o povo da região viu ser solapado todo o seu modo de vida com a invasão espanhola no século XVI. Em todos os lugares, a lógica da colonização foi submeter os povos originários, apropriar-se da terra, impor-lhes uma cultura alienígena e transformá-los em seres dóceis aos objetivos de domínio. Esse foi um fato político de extrema importância que, conforme diz Mariategui, mudou o cimento da vida dos povos que aqui viviam. Toda a proposta colonial, baseada na concentração da terra, não foi capaz de ser dissolvida nem mesmo nas guerras de independência, no século XIX. Apesar de todo o esforço de Simón Bolívar para incorporar os setores marginalizados da vida latino-americana, como os camponeses pobres e os originários, sua proposta foi derrotada e, ao final do processo de independência o que se viu foi uma América balcanizada, longe de corresponder aos ideais de unidade e soberania propostos no Congresso Anfictiônico do Pamaná, em 1826.

A vitória do grupo ligado à aristocracia agrária não alterou a estrutura da vida colonial. O poder mudou de mãos,mas seguiu na mesma classe. Saiu da coroa portuguesa e passou para a dos grandes proprietários de terra, brancos e ricos. A independência não destruiu o feudo, o latifúndio. Com isso, quem tem a terra segue tendo o mando e as riquezas. É nesse sentido que José Carlos Mariategui não consegue ver na questão indígena apenas um problema racial. Ele insiste que, a despeito de haver o racismo, o que também preciso ser superado é o sistema econômico que concentra terra e riqueza nas mãos de uns poucos, ou seja, a mesma velha lógica colonial. Esta análise, feita na década de 30, segue sendo bastante válida para os dias de hoje, observando-se os acontecimentos na Bolívia. A mídia – como sempre aliada dos poderosos – tem se esmerado em mostrar os conflitos como uma questão racial entre brancos e índios, esquecendo de mostrar o que se expressa por trás da aparência.

As raízes mais próximas
A atual crise que vive o governo de Evo Morales tem sua origem nesta história de invasão, domínio e colonialismo. E o que está em questão, muito mais do que o ancestral sentimento de superioridade dos brancos invasores, é a posse da terra, a forma de organizar a vida e as novas diretrizes econômicas, alavancadas a partir da eleição de um aymara como presidente da nação. Desde a colônia que meia dúzia de famílias tem mantido o controle das riquezas na Bolívia. Primeiro, rapinaram a prata, tendo como sócios os parceiros estrangeiros. Depois, foi o estanho, seguindo a mesma dobradinha aristocracia boliviana X multinacionais. Toda a riqueza foi, durante estes 500 anos, escoada da Bolívia para os bolsos de alguns “insignes empresários nacionais” ou para outros países. A grande maioria, marcadamente originária, seguiu sob o domínio desta política de “latifundiários”. Assim, um povo que era eminente agrário, e numa lógica comunitarista, de propriedade coletiva da terra, passou a ser escravo das minas, vendo sua cultura e sua forma de vida ser destruída de forma violenta e abrupta. Mas, é bom que se diga, todo esse processo de desmantelamento da vida não se deu de forma pacífica. Incontáveis são as revoltas, rebeliões e revoluções protagonizadas pelo povo boliviano. Todas derrotadas, é fato. Mas, ali, naquelas terras, os povos originários nunca deixaram de lutar.

O passado recente que acabou se expressando na eleição de Evo Morales, produziu movimentos de revolta e rebelião, sempre dentro da mesma temática: a reação das gentes frente ao domínio de uma aristocracia agrária e ao roubo das riquezas do país. Não foi à toa que os movimentos populares derrubaram um presidente que falava com sotaque gringo e exigiram o chamamento de uma nova constituinte para refundar o país. Gigantescos protestos foram feitos nos anos de 2000, 2002, 2003 e 2004. O povo boliviano queria a nacionalização das minas e dos hidrocarburos, além de uma nova lei magna que representasse todas as vozes e não só a dos ricaços latifundiários de sempre.

Evo e as mudanças
E foi a partir destas palavras de ordem que exigiam a recuperação da Bolívia para os bolivianos que um sindicalista camponês aymara, aliado a uma parte da pequena burguesia nacional, conseguiu vencer as eleições. Tinha como proposta essas demandas populares, além da promessa de discutir a autonomia das comunidades originárias dentro da nação, garantindo a elas, inclusive, a propriedade da terra e das riquezas subterrâneas. E esse, sem dúvida, é um dos pontos detonantes do movimento separatista iniciado pela aristocracia branca de Santa Cruz de la Sierra. Aos sempre eternos donos da terra boliviana resultou inaceitável dividir com os originários a posse da terra, disputando assim, finalmente, em igualdade de condições, um outro jeito de organizar a vida. Incapazes de abrir mão do poder, que julgam divino, sobre a posse da terra e das riquezas, não restou a eles senão a proposta de criação de um outro país, no qual eles não tivessem que dividir nada com ninguém que não sejam os seus velhos sócios predadores.

Evo Morales, sendo eleito, levou a cabo as promessas feitas ao povo. Nacionalizou os hidrocarburos, nacionalizou as minas e convocou uma Assembléia Nacional Constituinte. Esta câmara também logrou representar as gentes que durante 500 anos tinham ficado de fora do processo decisório. E isso acabou gerando todo o pavor nos latifundiários e nos seus sócios estrangeiros. Com maioria na Assembléia, o povo boliviano iria dar uma cara muito mais plural ao país e poderia, inclusive, garantir, a refundação de uma nova Bolívia, popular, democrática e pluri-nacional.

O sobrevôo da águia
Outro fator que não pode ser esquecido, dentro da chamada crise boliviana, é o papel dos Estados Unidos e das multinacionais. Durante décadas o país esteve atrelado econômica e politicamente aos interesses estadunidenses, sendo a embaixada dos EUA o verdadeiro centro de poder, conforme documentos que estão sendo revelados agora pelo atual governo. Assim, para o capital estadunidense, seus sócios perderem o controle das riquezas significa perdas monumentais. Logo, o contra-ataque não se fez esperar.

O primeiro deles se deu no interior da Constituinte. A minoria, representante da oligarquia rural, conseguiu obstruir o trabalho por meses, criando conflitos, violências e garantindo alguns ganhos. E o segundo é o fomento das divergências raciais, prática muito conhecida dos agentes da CIA pelo mundo afora, para manter os povos divididos. Não é sem razão que os separatistas de Santa Cruz têm como assessor o embaixador gringo Phil S. Golberg, conhecido por trabalhar no Kosovo durante o processo que redundou na fragmentação da ex-Iugoslávia. Foi a partir disso que iniciaram a proposta dos referendos para aprovar a separação da Bolívia, infringindo, inclusive, a lei. E, com os referendos ilegais, aproveitaram para trazer também a violência, a mentira, o racismo, ingredientes indispensáveis num processo de destruição de um projeto, para eles, perigoso demais.

A participação dos Estados Unidos no aniquilamento de projetos populares das nações latino-americanas não é novidade para ninguém. A política de divisão tem sua origem na Doutrina Monroe, enunciada pelo presidente estadunidense James Monroe, em 1823, que ficou conhecida como “América para os americanos”, e aqui, América está entendido os Estados Unidos. Na época, esta doutrina apareceu como uma advertência à Europa, afirmando que os Estados Unidos não tolerariam qualquer intervenção ou ocupação européia no continente americano. Na prática, foi o início de um tempo imperial, que deu aos Estados Unidos o poder de se arvorar em “Tio Sam”, ou seja, irmão das nações americanas. Um irmão voraz, ambicioso e destruidor. Não é à toa que o cantador venezuelano Ali Primeira tratou de sentenciar o fim da expressão “Tio Sam” aqui pelas nossas terras: “Eu não te digo tio, Dom Samuel, porque irmão da minha pátria tu não és”.

O futuro
E assim caminha a Bolívia, acossada pelos interesses estrangeiros, pela aristocracia títere e entreguista, pelos negócios escusos do império. Por outro lado, se levantam povos, gentes, seres, que acreditam ser possível mudar a vida, virar o leme, cambiar o rumo. Estes são os projetos que entrarão em embate nas urnas no domingo, dia 10 de agosto, desde 2008. Para os pobres, os originários, os camponeses, as mulheres, os desvalidos, os marginais da Bolívia real, será um dia de lembrar Tupac Catari e seu grito inesquecível, que ecoa até hoje pelas veredas da vida profunda: “Voltarei, e serei milhões”. Será a escolha entre o falso-irmão do norte e a soberania, entre Sam e Catari, entre a morte e a vida. Não será fácil, mas pode acontecer de as gentes levantarem a cabeça e decidirem por recuperar coisas bonitas e profundas que lhes legaram seus ancestrais: cooperação, solidariedade, terra comunal e riquezas repartidas. Não resta dúvida de que o governo de Evo Morales comete equívocos, tem problemas e deixa de avançar em questões igualmente fundamentais. Mas, está claro que há um caminho, que é novo, que busca a soberania. Um caminho para construir, em comunhão. Que venha, então, o dia 10. E que seja bom!

2008 - No deserto chileno, os likan antay

Por elaine tavares - jornalista

08.07.2008 - Quando a civilização egípcia florescia no vale do Nilo, há mais de cinco mil anos, nas terras de Abya Yala também existiam povos organizados, com língua própria, deuses e rituais. Eram os homens e mulheres de Tambillo, um grupo de caçadores que vivia na região onde ficam hoje as quebradas (oásis) do deserto de Atacama. Tal e qual este grupo, muito outros já começavam a fincar raízes, buscando fugir das altas temperaturas invernais que chegavam a 20 graus abaixo de zero. Segundo registros do museu criado pelo padre Gustave Le Paige, em San Pedro de Atacama, Chile, estes caçadores, já, naquela época, tinham domesticado animais como a llama e a vicuña, e viviam em comunidade.


Dois mil anos depois, quando lá no oriente os gregos iniciaram a formular filosofias, na mesma região do deserto chileno, vicejaram as gentes de Tulor. Eles eram sedentários, formavam povoações, construíam casas circulares, conheciam os segredos para uma arquitetura no deserto, cultivavam a quínua (espécie de cereal) e rendiam homenagens aos deuses registrando seus rituais mágicos em placas de cerâmica. São deles as primeiras obras de arte rupestre daquela parte do deserto de Atacama. Escavações promovidas pelo padre Le Peige dão conta de que, naqueles dias, os homens deformavam os crânios com almofadas para designar sua identidade e seu status na sociedade. As mulheres usavam adornos de turquesa e malaquita, e fica bem claro que eles tinham toda uma rede de comunicação com outros grupos organizados como, por exemplo, com o povo de Tiahuanaco, que vivia na região próxima de onde hoje é La Paz, Bolívia, a 600 quilômetros dali. São incontáveis os registros destas viagens nas pedras do caminho.


Quando o império Romano chegava ao seu auge, dois mil anos antes do presente, os atacamenhos já haviam também sofisticado seu modo de vida, e isso muito se deve ao contato que tinham com a gente de Tiahuanaco e com os Inkas, que viviam na região onde hoje é o Peru. Naquele período é registrado um grande desenvolvimento cultural e social. A metalurgia fica mais complexa, surge a cestaria decorada e são elaborados artefatos em osso e cerâmica para o uso ritual de inalação de alucinógenos. Peças belíssimas podem ser apreciadas no museu, que não devem em nada as peças da cultura ocidental. A cerâmica também fica mais sofisticada, toda trabalhada com figuras antropomórficas que representam mensagens mágicas e falam da cosmologia daquele povo. Os jarros usados nas cerimônias religiosas trazem enigmáticos rostos humanos e o povo já se expressa numa língua que tomaria conta de toda a região: a kunza.


Durante o período que ficou conhecido no mundo europeu como Idade Média, os povos da região das quebradas do Atacama foram se fortalecendo, criando cidades e produzindo cultura. Por volta do ano mil antes do presente, os atacamenhos formavam uma nação independente, unida na língua e no modo de vida. A relação com os Tiahuanacos e Inkas já havia enriquecido sua cosmologia e eles contavam com todo um arsenal de cantos, danças rituais, textos litúrgicos e música. O uso do instrumento feito de bambu, a quena (uma espécie de flauta, ainda hoje usada), também já era habitual. Seu som primal era um chamado aos deuses, todos praticamente ligados às forças da natureza. O sol, as montanhas, os animais eram reverenciados e muitos são os artefatos que os representam nos rituais. O xamã comandava as cerimônias vestido com uma cabeça de felino, cuja força era muito respeitada.


Na quebrada de Tambores, caminho de saída para o comércio com outros povos, que fica em meio a Cordilheira do Sal, muitos são os petroglifos que revelam o cotidiano e as crenças dos antigos atacamenhos. Antes de saírem pela trilha das llamas em direção a Tiahuanaco e outras regiões, eles desenhavam nas pedras, realizando um ritual mágico de tributo à terra e de despedida do Licancabur, a montanha sagrada que se impõe sobre a paisagem. Contam os mais velhos que quando os viajantes perdiam o contato visual com a montanha era preciso fazer muitos rituais, pois significava que a partir dali estariam sozinhos, sem a sua proteção.


Várias múmias - de gente destes tempos antigos - foram encontradas na região, em excelente estado de conservação e algumas delas podem ser vistas no museu, em toda a sua plenitude. É impressionante a múmia de uma mulher, na qual ainda pode-se observar a pele. Bem no meio do museu - que fica em San Pedro de Atacama - logo à entrada pode-se observar como eram sepultados os mortos. Eles eram vestidos com suas melhores roupas e tinham o corpo amarrado com pedaços de pano. Há registros de que a comunidade os levava em procissão até o local do enterro. O morto era colocado sentado e rodeado de todos os objetos que amava. Depois de coberto pela areia, um pedaço de madeira era cravado para indicar onde estava. Até hoje parte destes costumes sobrevive. No cemitério municipal de San Pedro, são bastante comuns os túmulos feitos de adobe, com os objetos do morto enfeitando a lápide. Tal e qual no Egito, eles acreditavam que, na outra vida, o morto precisaria sentir-se confortável e seguro tendo a sua volta as coisas que amava e precisava no seu cotidiano.


Os espanhóis


Como o povo Likan Antay (que significa atacamenho, na língua kunza) comerciava com os inkas e, nos idos dos 1500 até pagava tributo a eles, tão logo os espanhóis ocuparam aquela parte do Tahuantinsuyo, eles ficaram sabendo que havia um povo estranho destruindo tudo e se prepararam para resistir. Um dos lugares onde fincaram a resistência foi em Pukará Quitor (fortaleza do alto). Este lugar é uma fabulosa fortaleza construída no século 11 da era cristã, para a defesa daquela região. É que naqueles dias também havia muitas lutas pelo poder envolvendo os povos mais distantes. O lugar oferece uma visão fantástica de toda a quebrada. Um dos lados é totalmente inexpugnável e o outro tem um campo de visão imenso, ficando muito fácil perceber qualquer aproximação.


Quando em 1536 os espanhóis Diego Dalmagro Valdívia e Francisco Aguirre realizaram expedições de conquista por aquelas terras, foi ali que os atacamenhos resistiram por mais de 20 anos. Assustados, eles viram chegar o povo Yanaconas - que era inimigo dos inkas e auxiliou os espanhóis na conquista – com uma gente feita de ferro, montada em estranhos animais. Eram os espanhóis vestidos de armadura, cavalgando seus corcéis. Apesar da resistência, os Likan Antay não conseguiram vencer as armas de fogo e acabaram se rendendo em 1557. Naqueles dias, 25 chefes locais foram degolados e tiveram suas cabeças penduradas nos muros para lembrar o que podia acontecer a quem não aceitasse a submissão. Pensavam os espanhóis que era o começo do fim daquele povo. Ledo engano. Apesar de tudo, eles sobreviveram e hoje se erguem, fortes, e recuperam suas velhas tradições. Do alto de Pukará Quitor, quem tiver olhos para ver consegue perceber que a cultura Likan Antay caminha segura na mente e no coração dos homens e mulheres da quebrada.


Nos caminhos dos oásis do deserto de Atacama as gentes seguem rendendo pago aos deuses, cultivando sua cultura solidária, agindo firmemente para mostrar ao mundo que os likan antay existem como etnia e lutando para ter suas reivindicações reconhecidas dentro de um estado pluri-nacional. O Chile, tal qual os demais países da América Latina está vendo as culturas originárias, como a dos atacamenhos e dos mapuches, mais ao sul, recuperando sua dignidade e, sem medo, dizendo a sua palavra. Quinhentos anos de ocupação não lograram apagar a cultura de um povo de pródiga beleza. E é por isso que quando chega o pôr-do-sol, lá no Vale da Lua, se ouve a voz antiga, em língua kunza, a sussurrar: aqui vive o povo likan antay!