Povos Originários: segue a batalha contra o marco temporal



27 de Agosto de 2021,

Mais de seis mil indígenas sentados em frente ao telão emBrasília esperavam por um fechamento da questão do marco temporal, a proposta esdrúxula de definir o ano de 1988 como ano "um" da ocupação indígena. Isso significa que aprovada essa ideia só poderão ser demarcadas as terras as quaisos povos originários estivessem ocupando nesse ano específico. Ora, não precisaser muito inteligente para saber que o Brasil inteiro é território indígena.Eles aqui estavam quando Cabral chegou e aqui seguem resistindo depois de maisde 500 anos de massacres e tentativa de extermínio. Muitas etnias, ao longo dosséculos, precisaram mover-se no território, justamente para escapar da morte,então não faz qualquer sentido definir uma data do século XX para estabelecer direitos.

Na verdade, o sentido que parece não existir, existe, e é poderoso: simplesmente o desejo de ampliar a fronteira do agronegócio e da mineração num país que virou exportador de maetérias primas. As terras indígenas, que perfazem 12% do território, interessam por sua riqueza, biodiversidade e fertilidade. Por isso, a turma produtora de “commodities”quer botar a mão nelas. Para essa gente os povos originários são um atrapalho e precisam ser incorporados ao “mercado de trabalho”, indo para a vida disputar espaço nas cidades. Para eles pouco importam as pesquisas que comprovam serem as terras indígenas as mais preservadas do país, assim como não importa saber de sua cultura ou  modo devida que não encontram equivalência no modo capitalista de produção. O trabalho e a vida numa comunidade originária não existem para auferir lucro ou para exploração. Faz parte da cosmovivência de cada etnia. É outra forma de viver e agir no mundo.

“Ah, mas tem índio que vende madeira. Tem índios que planta em escala”... Sim, tem. Mas é uma parcela ínfima que, muitas vezes sem saída,acaba se incorporando ao modo de produção capitalista. Afinal, as tentações são muitas, assim como a fome e a perversa tutelagem. Ainda assim, isso não se aplica a maioria. O governo Bolsonaro, por exemplo, é pródigo em dar visibilidade a uma determinada comunidade que lucra com a agricultura. Caso absolutamente isolado. A regra geral são comunidades que se organizam conforme seu costume ancestral e, mesmo que incorporadas no mundo, conseguem seguir suas tradições de cultivo, arte, harmonia e modo de organizar a vida. E é essa maioria que resiste na sua terra original, ou luta para ver demarcado seu território. A tese do marco temporal, se aprovada, pode reverter demarcações já definidas e inviabilizar outras tantas que estão em andamento,impedindo que as etnias possam pleitear viver no seu espaço tradicional.

A demonstração de organização dos povos originários nesses dias de luta em Brasília tem sido extraordinária. Um acampamento de mais de seis mil pessoas no imenso vazio urbano que são as esplanadas da capital é uma imagem para ficar na memória por décadas. Mais de 170 etnias, com suas cores, seus cantos, suas danças, suas cerimônias tradicionais, incansáveis, imparáveis. Estão nessa batalha desde o primeiro dia de governo Bolsonaro, já que foram os primeiros a serem atacados com a destruição da Funai e com uma série de ataques contra sua forma de vida. Por isso, desde janeiro de 2019 vêm travando incontáveis peleias, expressas em marchas, acampamentos e atos públicos. 

Agora, nessa semana de espera pelo resultado do julgamento da ação relativamente à comunidade Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-LaKlãnõ(SC), que foi proposta pelo governo de Santa Catarina, as comunidades se organizaram e foram à capital protestar e esperar pela decisão do SupremoTribunal Federal. Estão lá há dias, cozinhados por um julgamento que se faz aos pedaços. Um voto é dado num dia, outro, meses depois, tudo muito bem articulado para cansar e desanimar. E tudo isso em meio a um turbilhão de notícias que aludem a um possível golpe das polícias militares contra o STF, cujos ministros são acusados pelos apoiadores do governo de "ditadores, terroristas e petistas".São dias de muita pressão, com a mídia de massas ignorando o acampamento indígena e dando destaque para os anúncios da quartelada que, segundo prega o presidente trará a “liberdade” de volta.

No que diz respeito ao marco temporal,o presidente Bolsonaro tem se manifestado veementemente dizendo que se o STF for contra estará causando o “maior caos” no país.

O tabuleiro da política está se mexendo, muitas vezes sem que saibamos realmente o que está causando o movimento das peças ou os acordos que se fazem nos bastidores. O STF jogou para a semana que vem a continuidade do julgamento causando ainda mais descontentamento, tanto para as comunidades que queriam ver o caso resolvido, como para o governo, que também quer se livrar da multidão indígena em Brasília antes do dia sete de setembro, quando está marcado o dia do ataque ao STF. Assim que uma decisão sobre o marco temporal, às portas do dia da “independência”, pode colocar lenha na caldeira, tanto para um lado como para outro.

No que diz respeito aos povos originários, a luta continua,o acampamento continua, a batalha pela vida continua. Como eles mesmos dizem,os governos passam, e eles têm sobrevivido século após séculos. Não será mais um adiamento que vai desanimar.

Eles voltam a cantar, dançar e afiar as flechas.

Povos indígenas: mais um corpo dilacerado


Foto: Terra Indígena da Guarita

O massacre iniciado em 1500 ainda não terminou.

Uma menina indígena, de 14 anos, da etnia Kaingang, de nome Daiane Griá Sales, foi encontrada morta, com o corpo dilacerado e alguns órgãos retirados, no interior do Rio Grande do Sul. Ela vivia na terra indígena de Guarita, em Redentora,  noroeste gaúcho, uma área de 24 mil hectares que abriga mais de sete mil almas Kaingang e Guarani. O corpo foi achado numa lavoura, cheio de hematomas e estraçalhado da cintura para baixo. Uma cena de horror, certamente constituída pelo ódio. Não se sabe ainda o autor nem a motivação. 

A notícia circulou na mídia burguesa como mais um crime, sem maiores alardes. Até aí, nenhuma novidade. Corpos indígenas caem todos os dias nos cantões do Brasil, assassinados pelos grileiros, madeireiros, mineradores, jagunços, latifundiários, sem provocar comoção. Ainda essa semana uma garota indígena foi atropelada por avião no meio da selva Amazônia, numa pista aberta pelo garimpo. Não ouvimos o Datena gritar na televisão contra essa barbárie que, além de ferir de morte a floresta, assassina os indígenas. Tudo parece normal no país de Bolsonaro. 

Mesmo agora, esse crime hediondo contra uma adolescente Kaingang não ocupa manchetes. E nas mentes perversas dos que odeiam os indígenas a sentença já foi dada: alguma coisa ela fez. É o que normalmente acontece quando a vítima é uma mulher, e se é uma garota indígena, bem, aí é pior. Não dá para esquecer que desde que assumiu o mandato de presidente da República, o mandatário geral tem atacado os povos originários, considerando-os um atrapalho ao progresso. Assim que implicitamente autoriza a violência e o extermínio. Isso não é de hoje, mas está pior.

No extraordinário livro de Edilson Martins, “Nossos índios, nossos mortos”, que deveria ser obrigatório em todas as escolas do país, ele conta sobre os horrores que os invasores portugueses e, depois, os brasileiros, faziam com as populações indígenas. Na ocupação da Amazônia, quando do ciclo da extração da borracha, os seringueiros a mando dos ladrões das terras sequestravam as mulheres e crianças, obrigando os homens a trabalhar na extração da borracha. As hordas se moviam pela floresta destruindo as comunidades, eliminando o modo de vida indígena, prostituindo mulheres e dispersando os homens pelos vários campos de colheita. Os donos dos seringais incentivavam então as famosas “correrias”, que eram as expedições feitas para espantar ou exterminar os povos que viviam na floresta. O nome correria é bastante ilustrativo sobre como eram as expedições. Os homens chegavam armados até os dentes, e botavam os índios para correr. Quem ficava era passado na faca ou no tiro. Martins conta que muitas vezes acontecia de os homens jogarem as crianças para o alto, aparando com a ponta do facão. Era um massacre. E tudo era feito entre risos.

Na região do sertão brasileiro o foco era mesmo: a posse da terra. A intenção dos invasores era a expulsão dos indígenas para que pudesse vingar a criação de gado. Poucas comunidades conseguiram sobreviver aos massacres. Aonde chegavam os brasileiros, os indígenas eram escorraçados. Aonde havia missionários, as crianças eram tiradas das famílias e criadas como se fossem brancas, para deixar de serem índias e se integrarem à sociedade. Na avançada pelo interior do país, com as bandeiras, a tática era igualmente cruel: envenenavam a água e deixavam coisas contaminadas com varíola. Milhares de indígenas morreram nessas investidas desumanas. E quando chegaram os imigrantes, começou a caçada aos chamados bugres, que era como eles nominavam aqueles que eram os verdadeiros donos das terras. Assassinar índios era quase um esporte. 

Esse processo seguiu até o século XX quando as etnias sobreviventes foram sendo concentradas em “reservas” e a nação as observava como uma reminiscência folclórica. Permitia-se que vivessem, mas sem atrapalhar o progresso. O quadro só começou a mudar quando os povos originários iniciaram o seu levante, exigindo a retomada de seus territórios originais e seus direitos de autonomia. Aí viraram inimigos dos fazendeiros, madeireiros e mineradores. A mídia fez seu trabalho e eles passaram a ser também inimigos da população. O ódio ao indígena e o racismo explícito não é isolado. Ele perpassa a nação. 

Assim como os corpos negros que são alvejados todos os dias nas grandes cidades, jovens e crianças, sem causar maior comoção, a morte de indígenas tem o mesmo peso. Ou seja: nenhum. Hoje como antes. Fosse uma menina branca, filha de algum fazendeiro, que tivesse sido encontrada morta nas condições de Daiane, o caso teria virado um tema nacional e se espraiado pelo mundo todo. Velas seriam acesas nos lares, haveria lágrimas de horror e ninguém descansaria enquanto o assassino não fosse pego. Tem sido assim desde sempre. Isso é o racismo estrutural. Está entranhado e é reforçado a cada segundo pela indústria cultural.

O assassinato de Daiane não é só mais um crime. Ele tem essa marca, cor e classe. 

Davi Kopenawa Yanomami, já apontou: “Vocês, brancos, dizem que nós, Yanomami, não queremos o desenvolvimento. Falam isso porque não queremos a mineração em nossas terras, mas vocês não estão entendendo o que estamos dizendo. Nós não somos contra o desenvolvimento: nós somos contra apenas o desenvolvimento que vocês, brancos, querem empurrar para cima de nós (...). Para nós desenvolvimento é ter nossa terra com saúde, permitindo que nossos filhos vivam de forma saudável num lugar cheio de vida”.

Esse sonho de Davi ainda é sonho e, no Brasil atual, está cada dia mais distante.