A chacana - um símbolo do universo

Para conhecer a cultura de nossos povos originários. A beleza da cosmovisão andina!!!

A violência contra os indígenas no Brasil


Quem passa pelas ruas do centro de Florianópolis já naturalizou a cena de famílias indígenas sentadas nas esquinas principais, com seus cestos, bichinhos de madeira e crianças. Poucos são os que percebem a presença humana. Alguns, ao notar, fazem aquela cara típica de quem está incomodado. Aquelas caras morenas, aqueles pés descalços e aquelas crianças ranhentas significam exatamente isso: um incômodo. No máximo, conseguem alguma comiseração. Nada mais que isso.

Os índios Guarani, que vivem nas proximidades de Florianópolis, seja em Biguaçu ou no Morro dos Cavalos, vivem a mesma triste realidade dos irmãos de outras etnias no Brasil. Sem terras boas, perdidos de sua cultura num mundo que nem os integra nem os aceita, precisam sair das aldeias para trocar as belezas que fabricam por dinheiro. Muita vezes, são esses minguados trocados garantidos pelas mulheres que permitem a sobrevivência. Tutelados pelo estado, mas sem uma assistência digna, as mais de 240 etnias brasileiras vivem em constante combate com o poder público bem como com o agronegócio, disposto a roubar tudo o que resta de terra indígena para o monopólio da soja, da cana ou do gado. E, nessa batalha, o índio acaba sendo sempre a parte mais fraca. Roubado, assassinado, destruído, apagado da história.

O relatório da violência contra os povos indígenas no Brasil produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) é a prova mais concreta dessa realidade. O trabalho levanta todos os enfrentamentos e retrocessos vividos pelos indígenas no ano de 2012, espaço de tempo em que se percebe uma brutal intensificação da violência, seja ela física ou institucional.

Foi em 2012 que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a Emenda Constitucional 215, um tremendo retrocesso legal articulado pelas bancadas dos ruralistas e dos evangélicos. Com essa emenda fica na mão dos deputados a decisão sobre a titulação das terras não só dos indígenas, mas também dos quilombolas. Ora, essas bancadas são as representações do capital internacional concretizados em empresas como a Monsanto, Bayer, Syngenta, Cargill e outras, todas ligadas ao agronegócio, que vem abrindo novas fronteiras agrícolas em estados como o Mato Grosso do Sul e Amazônia, espaços onde ainda têm muito índio. Daí a necessidade de ter o controle das demarcações. Muitas têm sido as manifestações contrárias por parte dos indígenas, mas a coisa avança. Até porque, as demais entidades de movimentos populares e sindicais não conseguem assumir essa causa como sua. São pautas que ficam na periferia dos movimentos enquanto os índios resistem em quase completa solidão. 

Também no ano de 2012 a Advocacia Geral da União publicou uma portaria, a 303, na qual apresenta uma interpretação sobre as condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal  no que diz respeito à terra indígena Raposa Serra do Sol (Pará), estendendo as mesmas para todas as áreas e retroativamente, o que significa que qualquer demarcação já realizada pode ser revista a qualquer momento. De novo aí estão agindo as grandes empresas internacionais do agronegócio em parceria com a oligarquia rural local. Desde aí, tem havia momentos importantes de levantamentos indígenas, de luta, protesto, manifestação. Tudo isso enfrentado com violência estatal e empresarial, ocasionando mortes e desaparições.

A situação chegou a tal ponto que, no Mato Grosso do Sul, onde estão centenas de indígenas esperando demarcação de terras, vivendo na beira de estradas, um grupo de Guarani-Kaiowá precisou lançar um manifesto anunciando a decisão de morrer coletivamente se preciso fosse para que o governo acordasse um mínimo diante da tragédia das gentes. A reação internacional, bem mais que nacional, reacendeu o problema da demarcação de terras, mas ainda que a comoção tomasse conta do país por algum tempo, logo essa pauta deu lugar a outros temas, e tudo seguiu como antes. Nada resolvido, apenas a fria e decisiva violência contra as populações. 

No relatório do CIMI, os números falam alto. Os governos de Lula e Dilma Roussef foram os que menos homologações de terra fizeram desde o primeiro governo civil, na década de 80. Sarney homologou 67 áreas e Lula 79. Dilma realizou apenas 7 homologações, embora existam hoje 339 terras indígenas já identificadas sem que qualquer providência tenha sido tomada. Isso sem falar das outras 293 áreas em processo de estudo. Fica clara, portanto, a completa omissão do governo federal diante da tragédia vivida pelas famílias indígenas. Também no ano de 2012 aumentaram os casos de conflitos e mortes envolvendo indígenas, fruto das invasões efetuadas por fazendeiros para a exploração ilegal de recursos naturais. Foram 62 ocorrências contra 42 em 2011. 

O caso mais dramático de violência estatal foi o ataque à aldeia do povo Munduruku, no Pará, onde a polícia federal invadiu a comunidade, destruiu moradias, escola, o posto de saúde, os barcos, o sistema de comunicação e todos os instrumentos de trabalho dos indígenas. O pretexto para isso foi o de que os indígenas estavam praticando garimpo ilegal. Na ação, que foi pródiga em espancamentos, acabou assassinado um jovem índio, Adenilson, praticamente executado com um tiro na cabeça. Na verdade, o povo Munduruku tem sido uma pedra no sapato do governo e do agronegócio na medida em que trava uma feroz batalha contra as hidrelétricas planejadas para o rio Tapajós. A ação violenta da PF foi uma intimidação e mesmo que tenha sido brutal, resultando num morto, nada aconteceu. Fora isso ainda foram registrados mais 60 casos de indígenas mortos em conflitos provocados por fazendeiros ou estado, sendo que só o Mato Grosso do Sul é responsável por 32 assassinatos.      

O fato é que os indígenas brasileiros estão colocados no meio de um processo que alguns economistas chamam de neo-desenvolvimentismo e que a mídia chama de progresso. Nesse universo estão as hidrelétricas, são 40 só na região amazônica, o alargamento da fronteira agrícola, a opção pela monocultura predatória, os interesses do agronegócio, a exploração de matéria primária como o minério. Tudo isso tem exigido a desocupação das terras onde vivem os indígenas. O argumento para isso é que eles estão entravando o processo de crescimento e que é preciso que eles se sacrifiquem pela nação. Nada poderia ser mais cínico.  E, nessa guerra de interesses o estado já provou que está ajoelhado diante dos grileiros de terra. 

Enfim, o relatório cuidadosamente elaborado pelo CIMI é um relato de horrores que merece ser conhecido pelo povo brasileiro. Há que se tomar posição diante da nova onda explícita de destruição da vida e da cultura dos povos originários. Nunca é demais lembrar que essa gente já ocupava esse território bem antes de que chegassem aqui os portugueses e espanhóis, portanto, não é possível que se tente empurrar para baixo do tapete da história essa realidade. Hoje são quase um milhão de pessoas que se autodeclaram indígenas e eles têm todo o direito de ocupar suas terras originais, bem como viver sua cultura e definir como querem organizar a vida. Esse é um direito assegurado pela Constituição e deveria ser um imperativo ético. A esfarrapada desculpa do progresso não se sustenta, uma vez que as benesses desse "progresso" são dirigidas a um pequeno e específico grupo: o do agronegócio. Ou seja, uma gente que sequer produz comida para a mesa das gentes.

As grandes mobilizações que acontecem hoje no Brasil carregam as mais variadas bandeiras, mas poucas são as que expõem a tragédia vivida pelos povos indígenas. Há que montar uma grande rede de solidariedade, caminhando para uma articulação concreta das lutas. A batalha dos indígenas por seu território é também a batalha da gente por harmonia e equilíbrio. Não há como separar o drama da destruição da Amazônia da nossa vida cotidiana, pois cada folha que cai no norte provoca algo no sul. É a lei da natureza. Tudo está ligado. O relato da violência contra os povos indígenas no Brasil é, como sempre, um grito lancinante. O que se espera é que ele não fique no vazio. 

Por que correram, deputados?



por elaine tavares - jornalista

As comunidades indígenas do Brasil estão em processo de crescimento. Desde 1991 , segundo mostraram os dados do IBGE, o aumento da população foi de 205%. Hoje, o Brasil já contabiliza 896,9 mil índios de 305 etnias, e em quase todos os municípios (80%) tem alguma pessoa autodeclarada indígena. Até mesmo alguns grupos já considerados extintos, como os Charrua, se levantam, se juntam, retomam suas raízes, formam associações e lutam por território. Isso significa que a luta que vem incendiando a América Latina desde o início dos anos 90 já chegou por aqui.

Não é sem razão que causou tanto estupor a declaração dos Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, de resistir até o último homem caso forem retirados de suas terras. É que as comunidades já estão fartas de conversinhas e promessas governamentais. Querem ver seus direitos garantidos agora e estão dispostos a lutar. Isso também coloca todo mundo em polvorosa, porque, de certa forma, quando os índios estão quietinhos nas aldeias, são muito bem vistos. Mas, bastou levantar o tacape para que os racistas e reacionários de plantão já se alvorocem. É o que acontece hoje em Santa Catarina, quando é chegada a hora da desintrusão da terra indígena do Morro dos Cavalos. Aceitos por vários anos, vivendo em condições precárias em poucos hectares, agora que tiveram as terras definitivamente demarcadas e lutam pela desocupação do território, provocam o ódio de comunidades pacatas e cheias de "gente de bem". 

Também é o que se vê na luta contra Belo Monte e as demais hidrelétricas que poderão destruir boa parte da vida no Xingu. As revoltas das comunidades indígenas e ribeirinhas incitam os velhos ódios e não faltam as vozes a clamar contra o que chamam de "obstáculos ao progresso". Já as fazendas de gado e de monocultura que destroem pouco a pouco a Amazônia são vistas como "desenvolvimento". Da mesma forma foram julgados como baderneiros e oportunistas os indígenas que ocuparam e resistiram na Aldeia Maracanã por sete longos anos, querendo unicamente preservar um espaço histórico. Foram retirados à força, como se fossem bandidos.

Agora, os ataques vem do governo e do Congresso Nacional, no qual tramita uma proposta de mudança na Constituição, a PEC 215. Essa proposta tem por objetivo transferir para o Congresso Nacional a competência de aprovar a demarcação das terras indígenas, criação de unidades de conservação e titulação de terras quilombolas, que até então é de responsabilidade do poder executivo, por meio da Funai, do Ibama e da FCP, respectivamente. A aprovação da PEC põe em risco as terras indígenas já demarcadas e inviabiliza toda e qualquer possível demarcação futura.

Além disso também está em vigor a portaria 303, da AGU, que define que qualquer terra já demarcada pode ser revista e tirada das comunidades, basta que dentro delas haja algo que seja do interesse dessa gente sempre pronta a sugar as riquezas do país (minérios, petróleo, rios). Ou seja, é a forma moderna de dominação dos mesmos velhos opressores. Se antes eram os arcabuzes, agora é a lei. E o que é mais espantoso, uma lei que viola a Carta Magna. 

Por isso é que os indígenas brasileiros organizados decidiram fazer uma ação em Brasília, junto aos deputados. Sabem que não dá para confiar numa casa cujos habitantes foram eleitos por grupos econômicos que sistematicamente vêm rapinando as riquezas da nação e, portanto, não hesitarão passar por cima de comunidades inteiras se isso for necessários aos seus interesses. E tanto isso é verdade que ontem (dia16.04) eles estavam lá, tentando conversar, tentando entrar na casa que dizem, é do povo. Mas, estavam impedidos. Só que decidiram não aceitar uma imposição sem sentido. Se a casa é do povo, entrariam. E foi o que fizeram. Forçaram a porta e adentraram ao plenário, onde os engravatados os ignoravam. 

A cena protagonizada pelos deputados seria risível se não representasse claramente o que pensam dos índios. Os engravatados correram, desesperados, quando viram um pequeno grupo de indígenas avançando  em danças rituais pelo meio do plenário. Para eles, aqueles homens e mulheres nada mais são do que selvagens, perigosos e ameaçadores. Não conseguem os ver como cidadãos brasileiros, iguais a eles em direitos e deveres. Os deputados correram por que? De medo? E por que teriam medo? Porque sabem muito bem o que fazem e como tratam os povos indígenas nesse país.

A vergonhosa correria rendeu frutos aos indígenas. O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), acabou propondo uma saída honrosa. A casa suspenderia  a criação da comissão especial que iria apreciar o mérito da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 e criaria  um grupo paritário para discutir os temas de interesse dos povos indígenas. Os índios reunidos no Salão Verde conversaram e deliberaram aceitando a proposta . 

Agora é vigiar porque esse não vai ser um debate fácil. Tanto o governo como os grupos de poder que financiam a maioria dos deputados querem poder dispor das terras indígenas que estão cheias de riqueza. Mas, o fato é que a ação do "abril indígena" conseguiu pelo menos colocar em pauta um tema que já vem caminhando desde anos e não recebe a devida atenção nem pela mídia nem pelos deputados. Foi uma vitória, parcial e temporária, mas ainda assim uma vitória. O que prova por a + b que só a ação direta e organizada faz a vida das gentes avançar. E, para aqueles que estão aí, na luta sempre, a cena do apavoramento dos deputados deixa muito claro que eles sim, têm medo, embora não tenham prurido de destruir sistematicamente o modo de vida dos povos indígenas. A lição do abril indígena é singela: é preciso fazer com essa gente que não leva em conta os desejos das maiorias voltem a ter medo delas. A luta de classes avança por aqui também...     
  

Aldeia Maracanã - carta aberta ao povo


Carta aberta à imprensa e a todos que apoiaram à Aldeia Maracanã e o Movimento Tamoio dos Povos Originários:

“Existe um mundo ideal. Também existe o mundo real. Saber o tempo certo entre os dois e conseguir garantir que seus ideais não sejam completamente aniquilados é o que nos torna sábios.”



Em reunião no dia 23 de março no Hospital de Curupaiti em Jacarepaguá, as etnias indígenas Pataxó, Tukano, Guarani, Puri, Apurinã, Tupinambá, Kaingáng, e Sateré-Mauwé residentes na Aldeia Maracanã desde a sua ocupação em 2006, decidiram divulgar nota à imprensa e aos diversos movimentos sociais que nos apoiaram nestes seis anos e cinco meses de resistência em defesa de um projeto indígena para o Rio de Janeiro, para informar os motivos da saída do antigo Museu do Índio, no dia 22 de março, após todas as tentativas da permanência naquela aldeia.

Importante recuperarmos como e porque foi formado o Movimento Tamoio dos Povos Originários, que planejou a ocupação do prédio na Mata Machado, antigo Museu do Índio, em 20 de outubro de 2006.

Há cerca de dez anos algumas etnias já realizavam um trabalho educativo nas escolas e universidades, com o objetivo de divulgar a história dos nossos povos contada por nós, desconstruindo os conteúdos deturpados da maioria dos livros didáticos. O amadurecimento sobre tal ocupação demonstrou a necessidade de termos um espaço para ampliarmos esse trabalho, bem como estimularmos a vinda de outras etnias.

Era necessário também dar visibilidade às nossas lutas, reivindicações e projetos realizados em escolas muito antes da Lei (11.645/08), que tornou obrigatória a inclusão da cultura dos indígenas nos estabelecimento de ensino. Portanto, nosso bem maior sempre foi a ampliação do projeto em curso em vários espaços neste estado. Ocupar o prédio tornou-se vital para aglutinar diversas etnias e garantir a visibilidade da cultura indígena

Várias reuniões foram feitas e a decisão de ocupar o imóvel do Antigo Museu do Índio, localizado no centro histórico de resistência Tupinambá e Tamoia contra a invasão portuguesa, foi a mais acertada. Ali estavam os espíritos de nossos antepassados e era chegada a hora de voltarmos para casa.

Organizamos o 1ª Seminário dos Povos Originários no auditório da UERJ e dali, saímos em caminhada para a Rua Mata Machado. A mãe natureza nos enviou uma chuva fina que ajudou a esvaziar as ruas do trajeto pensado, facilitando a nossa retomada, estremecida apenas pela surpresa do vigia que, assustado, apontou sua arma para nós. Dialogamos e mostramos que éramos indígenas e estávamos apenas voltando para a casa de nossos ancestrais pais. Ao cantarmos e dançarmos, ele se acalmou e nos alojamos naquele espaço sem luz, nem água, com entulhos espalhados por toda parte, com ratos, baratas e mosquitos. A alegria de retomarmos a aldeia de nossos ancestrais nos deixou felizes, apesar das condições precárias.

A cada dia, tínhamos uma batalha a vencer e durante todos esses anos tentamos negociar o direito da posse legítima do Museu abandonado pelo poder público. Outros desafios chegaram. Por ocasião da Copa, as ameaças constantes de desocupação para transformar aquele espaço em estacionamento, nos consumiram na luta contra tal proposta absurda, prejudicando o projeto de difusão da nossa cultura.

Solicitamos audiência com o Ministério da Agricultura, pois o prédio estava sob sua responsabilidade; fizemos contatos com diversos parlamentares estaduais e federais, buscando ajuda para a negociação pretendida; buscamos apoio de universidades, antropólogos, estudiosos e todas as entidades que acreditávamos que poderiam contribuir na busca dessa negociação. Portanto, reafirmamos nossa total disposição de negociar para a continuidade dos nossos objetivos de resgate e difusão da cultura dos povos indígenas, tornando aquele Museu um Centro de Referência de nossa cultura, nesta cidade que já foi palco de outras iniciativas violentas contra nossos parentes e citamos, por exemplo, o que fez o então governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, quando reuniu poderoso exército com gente da Guanabara, São Vicente e Espírito Santo, tendo como objetivo liquidar o último bastião da "Confederação dos Tamoios". 

Após o cerco e a rendição da fortaleza franco-tamoia, dois franceses, um inglês e o pajé tupinambá foram enforcados; 500 guerreiros foram assassinados a sangue frio e aproximadamente 1500 índios foram escravizados. As tropas vencedoras ainda entraram pelo sertão, queimaram aldeias, mataram mais de 10.000 índios e aprisionaram outros tantos. Os sobreviventes refugiaram-se na Serra do Mar e Cabo Frio.

Destacamos, pois, os motivos que nos fizeram escolher o caminho da negociação pacífica e não o caminho que colocaria em perigo não só a perda do nosso projeto, como também o que levaria às ações violentas como as que foram utilizadas naquele dia, espelho do que tem sido as formas de violência registradas na história dos povos indígenas em nosso país, há 513 anos, que lutaram e continuam lutando pela demarcação de nossas terras, do resgate de nossa cultura, pelo direito à educação e saúde diferenciada, pelo respeito à nossa dignidade:

* em primeiro lugar, sempre tratamos os nossos parentes com responsabilidade e zelo e nunca aceitaríamos que eles viessem das aldeias para entrarem em confronto com a polícia, que sabemos ser truculenta, a serviço do estado. Portanto, a responsabilidade que sempre tivemos com nossos pares em garantir a integridade física daqueles que têm em nós confiança nos motivou a aceitar uma saída pacífica para todos os integrantes da Aldeia; infelizmente, parte dos indígenas decidiu ficar e resistir, sem negociação.

* nosso projeto tem dez anos de existência, portanto, muito mais antigo do que a ocupação do prédio do Antigo Museu do Índio e esgotadas todas as formas de negociação pelo prédio, tivemos que fazer a “Escolha de Sofia” e optamos pela continuidade do projeto em outro espaço.

* diante da reintegração de posse do imóvel garantida ao Governo, o Secretário de Direitos Humanos Zaqueu nos cobrou uma posição visto que desde o dia 15 de janeiro tentava uma resposta sobre a proposta enviada ao Conselho da Aldeia Maracanã, afirmando que não havia mais tempo para a continuidade da negociação.

Queremos reafirmar que repudiamos a forma truculenta e desumana que fomos tratados pela Polícia Militar por determinação do governo, desrespeitando inclusive o que estava estabelecido no documento de reintegração. Exigimos retratação do senhor Secretário Municipal de Cultura, Sérgio Sá Leitão, que declarou na mídia seu pensamento preconceituoso e discriminatório contra os povos indígenas. Não admitimos que um Secretário de Cultura não entenda a importância do nosso movimento que primou todos esses anos em propagar a cultura indígena nas escolas inclusive do Município do Rio de Janeiro, fazendo um trabalho que deveria ser feito pela Secretaria de Cultura deste município e que nunca fez.

Reafirmar nossa trajetória histórica pelo dialogo e que somos povos pacíficos. Enquanto a polícia militar nos confrontava com spray de pimenta, bombas de efeito moral, balas de borrachas e armas sônicas, o que tínhamos para nos defender eram apenas nossos maracás e nossos cantos evocando nossos ancestrais.

Repudiamos toda e qualquer ação que tentou dividir as diversas etnias que por seis anos estiveram reunidas naquele espaço.

Queremos expressar a nossa emoção ao sermos recebidos de forma fraterna pelos moradores da Colônia Curupaiti, que são igualmente discriminados por terem tido hanseníase. Queremos dizer que estaremos juntos, desenvolvendo inclusive, junto com eles, um trabalho de combate a todas as formas de discriminação, mas não descansaremos até que o governo cumpra o acordo da construção da nossa Aldeia até junho deste ano.

MUKAMUKAU TAMOIO!

Assinam esta nota:

Carlos Tukano- cacique
Garapirá Pataxó-vice-cacique
Afonso Apurinã 
Caio Pataxó 
Dauá Puri
Dantiê Tupinambá
Elvira Sateré-Mauwé
Magangá Pataxó
Nativa Pataxó
Pacari Pataxó
Marize Guarani
Tehé Tupinambá
Vangri Kaingang

O racismo contra os indígenas está vivo e passa bem




por elaine tavares  - jornalista

Uma entrevista em vídeo realizada com a cacique Eunice Antunes, da comunidade Guarani, do Morro dos Cavalos, mostrou o quanto a questão indígena em Santa Catarina também é revestida de profunda violência. O "sul maravilha", de certa forma, passa a imagem de um espaço civilizado, longe da truculência de regiões conflagradas como a Amazônia ou o Mato Grosso do Sul, nas quais é comum o assassinato descarado de índios. Só que isso é pura ilusão. Ou pior. Mostra que quando os índios estão quietos, confinados na sua miséria, é sempre muito fácil parecer "bonzinho" e "respeitar" os direitos, no geral expressos em distribuição de cestas básicas. Mas, se eles se levantam em luta e exigem que as terras sejam demarcadas, que a lei seja cumprida, aí a violência assoma, com sua cara feia, e todo o racismo que subjaz no cotidiano igualmente aflora.

A comunidade Guarani do Morro dos Cavalos é um espaço de quatro hectares onde se apertam 28 famílias, 200 almas. Elas reivindicam desde há anos suas terras ancestrais e, finalmente, em 2008, os 1.997 hectares aos quais têm direito foram demarcados. Só que nesse território também estavam mais de 60 famílias de "juruás" (os brancos), que, ou grilaram ou compraram as terras e agora precisam sair. O trabalho da Funai tem sido sistemático no sentido de indenizar e retirar as famílias. A maioria tem aceitado, mas uma parcela insiste em ficar. Sentimento justo, afinal, algumas estão ali há gerações. E é por aí que se espraia o conflito. O governo do estado deveria também indenizar as famílias, no valor da terra, já que a Funai só paga as benfeitorias, por conta de que o espaço é uma reserva natural e não poderia ter ninguém morando.

Pois a fala da cacique (http://youtu.be/bKUKCXHDCKU), contanto essa história e, inclusive, se colocando a favor da indenização dessas famílias, fez brotar um onda de violências verbais nos comentários do You Tube, que bem mostram a intolerância, o ódio e o preconceito que cerca a questão indígena. "diz que os jovens só ficam brincando, vendo TV depois da aula, pois recebem bolsa família,bolsa escola. A cacique ainda não os ensinou a pescar, caçar, afinal ela não tem tempo, pois fica só recebendo informação da FUNAI. Que cultura é essa de índio recebendo bolsa do governo?", diz um dos comentários. E outro: "A cacique é bem viajada, faz turismo com nosso dinheiro. Quase não fica na aldeia,  está explicada a vinda dos índios à vila pedir (esmolar). Essa é boa vida deles. Não é preciso ser índio, basta seguir a religião para se dizer índio". 

Outras barbaridades como chamar a cacique de boliviana, paraguaia, estrangeira e fazer piada com o fato de ela estar usando batom foram depois retiradas dos comentários quando alguém sugeriu que ia entrar na justiça por racismo. O debate mostra, com riqueza de detalhes, o ranço que existe, indelével, não só nas comunidades próximas à aldeia, mas também em todo o estado. Para boa parte das pessoas, índio só é bonitinho nas páginas dos livros ou quietinho nas aldeias. Bastou gritar, exigir direitos, para virar inimigo, "coisa ruim".

Ser índio

O movimento de recuperação das culturas originárias que assomou na América Latina desde o final dos anos 90 demorou a chegar no Brasil. E não poderia ser diferente. Ao contrário de países como a Bolívia, Equador, Guatemala e outros que contabilizam a maioria da população como indígena, aqui no Brasil os povos autóctones foram sendo dizimados desde a chegada dos portugueses em 1500. Com a leva dos imigrantes logo após a abolição da escravatura, mais uma onda de destruição dos povos indígenas se fez. No início do século XX, com a necessidade de abertura de novas fronteiras agrícolas, também a região norte, ainda bastante isolada, foi sendo tomada. Restou aos indígenas o confinamento em reservas ou a integração forçada na vida dos brancos.  Tudo isso foi provocando a desaparição de povos inteiros e a falta de uma política clara de demarcação dos territórios também fomentou uma espécie de "guerra" permanente com os interesses dos fazendeiros, mineradores e madeireiros que foram invadindo as terras indígenas. 

Hoje, depois de mais de uma década de lutas importantes pela América Latina e a profunda mudança na posição dos indígenas diante de sua realidade, também os povos do Brasil começaram a se integrar no processo de retomada da cultura e da identidade. Tanto que , segundo o IBGE, a população indígena cresceu 205% desde 1991. Isso porque muitas pessoas que já estavam no mundo urbano, "integradas", também resolveram assumir sua identidade e lutar pela sua cultura. Hoje, o Brasil já contabiliza 896,9 mil índios de 305 etnias, e em quase todos os municípios (80%) tem alguma pessoa autodeclarada indígena. Até mesmo alguns grupos já considerados extintos, como os Charrua, se levantam, se juntam, retomam suas raízes, formam associações e lutam por território. A maioria dos indígenas, 63%, ainda vive em área rural e o IBGE também constatou que aqueles que já estão com suas terras demarcadas conseguem viver com mais tranquilidade, vivenciando suas culturas. Esses, conformam também uma maioria, com mais  de 500 mil pessoas.  

A única exceção é a terra dos Yanomami, a mais populosa, com 25 mil e 700 habitantes, entre os estados do Amazonas e Roraima, que tem sofrido a invasão sistemática de garimpeiros em busca de ouro e outros minerais. Vários conflitos são registrados sistematicamente na região desde o ano de 1996, quando o então deputado Romero Jucá entrou com um projeto de lei para regulamentar a mineração em terras indígenas, principalmente na dos Yanomami. Naquele mesmo período, segundo denúncia dos indígenas, ele e José Sarney derramaram mais de 40 mil garimpeiros na área, exacerbando os conflitos. Esse projeto tramitou e em 2012 o deputado Édio Lopes (PMBB), de Roraima, apresentou um substitutivo global, o qual sugere a cessão de quase 80% do território Yanomami para grandes empresas mineradoras. Existem, hoje, mais de 650 requerimentos de empresas querendo minerar nas terras indígenas. Assim, sob a alegação de que as riquezas nacionais precisam ser exploradas, mais uma vez os indígenas correm risco de perderem sua vida. “Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite cai realmente e que se possa ver as estrelas", insiste Davi Yanomami, mas esse seu desejo não é levado em consideração quando o que está em jogo é a expansão do capital e a exploração desenfreada de minerais.

Não bastasse isso, outras comunidades do norte estão hoje completamente ameaçadas pelas famosas obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Essa região concentra 38,2 % dos projetos, que envolvem abertura de estradas e construções de usinas. Dos 61 projetos em andamento no norte, 37 deles estão da região amazônica e devem atingir 30 áreas indígenas . O mais emblemático e que já provocou dezenas de conflitos é o de Belo Monte, uma obra gigante que coloca em risco todos os povos do Xingu. 

Outro drama que se desenrola longe das câmaras de TV e da consciência nacional é o do povo Pankararu, uma comunidade de oito mil pessoas que sempre viveu às margens do Rio São Francisco, em Petrolândia, Pernambuco, e que agora está sem acesso à água e ao rio por conta das obras de transposição.  Desalojados, perdidos da relação com o rio, eles são abastecidos com carro-pipa, nas piores condições, enquanto o governo fala nas maravilhas da transposição, que nada mais é do que a proposta de levar água ao agronegócio. Já, com os índios, quem se importa?

Também os povos que vivem no Mato Grosso do Sul amargam violência e desamparo. São mais de 30 acampamentos de indígenas no estado, que é o que lidera o triste pódio de assassinatos de índios (62% ) , assim como o de mortes de crianças indígenas por falta de assistência médica. Recentemente uma comunidade de Guarani Kaiowá, com 170 pessoas, que estava acampada em dois hectares na beira de uma estrada, ameaçou resistir até o último homem caso fosse despejada. O drama provocou comoção nacional quando a mídia falou em suicídio. Na verdade, o estado de Mato Grosso do Sul também é campeão em número de suicídio de índios, com mais de 1.500 casos registrado nos últimos dez anos, sendo a maioria de jovens de 13 a 15 anos, completamente destituídos da vontade de viver sem condições de serem plenos na sua cultura. 

A voracidade do capital

E assim é a situação dos povos indígenas nesse país. Sempre tendo de superar dezenas de barreira para simplesmente ser. No Amazonas meninas índias trocam a virgindade por 20 reais, madeireiros assassinam índios no Pará, fazendeiros escravizam índios em Vacaria, Rio Grande do Sul , índios morrem nos cantões tentando defender suas terras. Tudo isso aparece como pequenos "drops" informativos, como se fossem casos esdrúxulos, fora do normal.  Não são. Essa é a realidade cotidiana de milhares de indígenas, todos os dias colocados sob o foco do racismo, tal como agora acontece em Santa Catarina. São chamados de feios, sujos, vagabundos, bêbados, paraguaios, escória do mal. Basta de saiam de suas aldeias e reivindiquem. Agora, com a política de cotas, eles estão entrando nas universidades. Mais um espaço no qual o racismo aflora com força. 

É uma tarefa dura para as gentes autóctones viver num mundo que os hostiliza sempre que saem da sua condição de "coitadinhos". Mas eles estão aí, crescendo, se multiplicando. Com outros tantos de autodeclarando, assomando na cultura, na língua, no território. Nunca será fácil. A consciência de que todo o território foi roubado custa a se formar , daí a violência que se vê no dia-a-dia. Mas, muito mais do que isso, o que provoca a maior parte dos conflitos é insaciável expansão do capital. Terras indígenas como as do Mato Grosso do Sul são pura fertilidade, os fazendeiros as querem. Também são ricas em minério as terras amazônicas, e os interesses multinacionais são gigantes. Daí que fomentar o racismo, provocar o ódio, também faz parte da estratégia do capital. Fica mais fácil destruir, derrotar, extinguir aquilo que as pessoas consideram "lixo". Assim, não há culpas. 

Por isso que no sul do Brasil, na "europa" brasileira, Santa Catarina, famílias de gente boa, pia, se engalfinham em discórdia com os índios, os sujos, os paraguaios, os estrangeiros. Parece até coisa do realismo fantástico. Chamam de estrangeiros aqueles que são os verdadeiros donos da terra. Na terra Guarani, nesses dias de outono, as gentes espiam pelos barracos mal havidos, com medo. Porque ousaram lutar e garantir seu território. Agora amargam a violência e a discriminação. E, ao largo, a vida passa.