Vida em resistência: A comunidade Goj Veso, de Iraí/RS

13.09.2017 - Trabalho das jornalistas Julia Saggioratto e Cláudia Weinman sobre a resistência de famílias indígenas, da etnia Kaingang, na cidade de Iraí, Rio grande do Sul. Produção: Cooperativa Desacato.


Quem são os donos das terras em Santa Catarina?


24.08.2017 - O trabalho minucioso e silente do ecologista e militante social Gert Schinke sobre a questão da terra em Santa Catarina resultou num livro explosivo, lançado em 2015: "O Golpe da Reforma Agrária: Fraude Milionária na Entrega de Terras Em Santa Catarina". Olimpicamente ignorado pela mídia comercial, o trabalho de pesquisa de Gert denuncia as doações irregulares feitas pelo Estado, durante a ditadura militar, à amigos e correligionários, desvelando assim a farsa sobre a posse do território.

O livro do Gert apareceu justamente num momento em que a cidade discutia vivamente o tema da posse da terra, depois de experienciar a impactante e paradigmática “Ocupação Amarildo”, uma toma de terra na região da praia de Canasvieiras por famílias que não podiam mais pagar os abusivos aluguéis cobrados na ilha. A ocupação, apesar de ter sido violentamente combatida, com as famílais sendo retiradas do local, colocou à nu a verdadeira face dos “donos da terra” e levantou o debate sobre uso do solo. Naqueles dias, o empresário Artêmio Paludo reivindicava a terra como sua e, depois, foi comprovado de que não era. Havia ali acontecido a típica grilagem. Ou, no bom português: roubo.

Pois o livro, apesar de boicotado pelos meios de comunicação, seguiu seu caminho. Era um trabalho de investigação, totalmente documentado, e que mostrava como o governo havia usado a proposta de “reforma agrária” pensada antes do golpe de 1964, para presentear os amigos através do Instituto de Reforma Agrária de Santa Catarina. Na pesquisa, foram registrados os nomes e sobrenomes das famílias que levaram terras, grandes extensões, de maneira totalmente irregular.

Tudo parecia seguir o velho caminho das denúncias que se fazem sobre os ricos: o vazio. Mas, sem que se pudesse prever, essa semana a Polícia Federal (PF) chegou a dois órgãos do estado: a  Secretaria de Agricultura e Pesca e o Centro de Informática e Automação do Estado de Santa Catarina (Ciasc). Tinha um mandado de busca e apreensão de documentos. Os agentes levaram caixas e caixas dos materiais históricos referentes ao repasse de terras no Estado para terceiros. Foram recolhidos microfilmes e papéis com registros antigos da reforma agrária que agora o Ministério Público Federal (MPF) pretende investigar. Eles querem saber se, de fato, conforme denunciava Gert, foram distribuídas áreas da União de forma irregular.

Segundo o procurador João Marques Brandão Neto todo o material também vai passar por um processo de digitalização, para evitar que se percam.

É certo que discutir a posse da terra no Brasil é sempre mexer num vespeiro e tudo pode acabar em pizza, principalmente nesses tempos. Mas, sempre há uma chance de a justiça acontecer. Para Gert Schinke, autor do livro que provocou essa ação, a sensação é de pura alegria. Afinal, foi o seu paciente estudo que levou a essa descoberta, de ilegalidades e fraudes. Na época da pesquisa ele mesmo se surpreendeu que as provas estivessem todas ali, nos arquivos, mostrando o quanto a classe dominante vive certa da impunidade sobre si.

O trabalho de Gert, apesar de não ter sido discutido ou conhecido pela mídia comercial, gerou debates em todo o Estado, pois aponta os ganhadores de terra em várias regiões de Santa Catarina. Por conta dessa recepção, ele seguiu pesquisando e agora em setembro lança a segunda edição do livro, revisada e ampliada em mais de duzentas páginas.

A verdadeira face dos “donos das terras” aparece em sua claridade. Nesses momentos em que “empresários” discutem inclusive a legalidade da ocupação indígena no Morro dos Cavalos, por exemplo, é fundamental conhecer como foi que boa parte dos barões das terras no estado tiveram acesso a ela.

A segunda edição de o "O Golpe da Reforma Agrária: Fraude Milionária na Entrega de Terras Em Santa Catarina" será lançada no dia 4 de setembro no salão da Reitoria da UDESC, às 19h. mais um sucesso da Editora Insular.

Luta contra o marco temporal


16.08.2017 - Hoje o STF discute a constitucionalidade de um decreto (Decreto 4887 de 2003) efetuado no governo Lula sobre  os quilombolas e os indígenas, que garante direitos e participação nos processo de demarcação e reconhecimento dos territórios.  A tese contra o decreto é a do Marco Temporal, que determina que só as comunidades que já ocupassem territórios tradicionais no ano de 1988 teriam direito a discutir sobre a posse desses espaços.

Ora, quem conhece a história dos povos originários nesse país sabe muito bem que as etnias foram escravizadas, dizimadas ou obrigadas a fugir quando a invasão de suas terras começou em 1500.

Por aqui, no território brasileiro viviam cinco milhões de almas, que chegaram ao seu menor número na década de 1960, quando contavam apenas 160 mil. Ao longo de cinco séculos, os invasores quase lograram exterminar as nacionalidades indígenas.

Ocorre que não conseguiram. Muitas etnias resistiram e voltaram a crescer. Hoje, contam um milhão de pessoas que exigem seus territórios históricos para viver e cultivar sua cultura. Pode-se pensar que é um número pequeno, diante da totalidade de quase 200 milhões de habitantes. Mas, isso não significa que por serem poucos não devem ser respeitados no seu direito a uma terra que é legitimamente suas.

O mesmo ocorre com as comunidades quilombolas, formadas por negros que conseguiram escapar da escravidão. Há com eles, igualmente, uma dívida histórica, afinal, seus antepassados foram sequestrados de suas terras e trazidos para cá à força. Isso exige reparação. E todos estão nas terras bem antes de 1988.

Mas, para aqueles que controlam a vida no sistema capitalista de produção, não existem conceitos como justiça ou direitos. E a terra é mero espaço de especulação, mercadoria. Não estão satisfeitos em controlar quase 70% das terras agricultáveis, querem tomar também o pequeno espaço reservado aos povos originários, que ocupam cerca de 12%  do território, muito dele ainda não legalizado.

Os latifundiários, que são a linha de frente do ataque ao indígenas, insistem em reclamar que há muita terra para pouco índio e a mídia comercial reverbera esse mantra, fabricando um consenso nacional. A mesma mídia não revela que o Brasil é segundo país no mundo em concentração de terra e que uma única pessoa pode ser dona de mais de um milhão de hectares de terra.

A verdade é que é que há muita terra na mão de poucos latifundiários. Praticamente 300 pessoas se apossaram de quase 70% do território. Então façam as contas:

300 têm 70% das terras
Um milhão ocupam 12% das terras. 

É muita terra para pouco quem? E foram esses poucos latifundiários que tiveram agora, no governo Temer, suas dívidas perdoadas. Eles devem quase um trilhão de reais, e Temer perdoou 25% do valor, bem como eliminou 100% dos juros que incidiam sobre ela.

Alguém pode dizer: Ah, mas os latifundiários são responsáveis pela produção. Não é verdade. Quem realmente produz comida para a gente comer são os pequenos e médios produtores, cerca de 12 milhões, que ocupam perto de 20% da área agricultável do país. E é esse povo, nesse espaço pequeno de terra que produz 70% de tudo o que comemos.

Então essa conversinha de “marco temporal” nada mais é do que outro golpe dentro golpe. A ganância sem limite de um sistema que é incontrolável.

Para os povos originários e quilombolas, que hoje estão em vigília, tanto em Brasília como em todas as comunidades que se espalham pelo país, o único marco temporal possível de ser aceito é o de 1500. Seus ancestrais estavam aí, vivendo livremente, quando foram invadidos e roubados. E os negros estavam no território africano, livres.

Aos não-índios, que vieram depois, tudo o que se pode pedir é que compreendam sua história e apoiem a luta dos povos originários e dos quilombolas pelos seus territórios. Diante da magnitude do roubo que foi efetuado, diante do sequestro, o que pedem é muito pouco. Demarcação de seus territórios tradicionais, liberdade para viver em paz.

Já quanto ao STF as expectativas são sombrias, afinal, os que ali estão são defensores da classe dominante. Pouco se pode esperar de justiça. É a luta que vai determinar a vitória dos indígenas e dos quilombolas. E a luta continua.

Representantes indígenas na Constituinte venezuelana


02.08.2017 - A eleição dos oito representantes indígenas que ocuparão cadeira na Constituinte foram eleitos nessa última terça-feira, dia 1, conforme os costumes das comunidades, com os mecanismos escolhidos pelas próprias etnias, com a supervisão do Conselho Nacional Eleitoral. Eles tomarão posse junto aos demais eleitos amanhã.

O estado venezuelano, além de garantir cadeiras específicas para os povos indígenas, também dá total autonomia na escolha de seus representantes, levando em consideração a realidade e os ancestrais costumes das nacionalidades que vivem dentro do território. Por conta disso a votação foi feita em separado, para que a forma originária fosse respeitada. Essa é mais uma forma de garantir a participação protagônica e democrática dos venezuelanos. 

Na região sul do país, representando os estados de Amazonas e Apure, foi eleito Nelson Mavio,  enquanto as populações do oeste, pelos estados de Zulia, Mérida e Trujillo, elegeram Aloha Nuñez, Indira Fernández, Noleí Pocaterra e Freddy Panapera.

Na região leste da Venezuela, pelos estados de Monagas, Sucre, Anzoátegui, Delta Amacuro e Bolívar, foram eleitos Clara Vidal, Zoila Yanez e Elías Romero.

Ao todo, na votação de domingo, participaram 8.089.320 venezolanos, que escolheram os 537 membros da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

Ainda é 1500


31.07.2017 - A cena é tocante. Na beira do asfalto, um grupo de indígenas olha, entre estupefato e triste, outro grupo de gente, branca, postado em cima da passarela. Os brancos estendem faixas, denunciando uma “invasão” dos indígenas e dizendo que a demarcação das terras ameaça o seus lares. São moradores da comunidade Enseada de Brito, que fica próxima à terra Guarani, no Morro dos Cavalos. Vê-se que são “bem-nascidos” e poderiam estar no rol das chamadas “pessoas de bem”. Um deles ostenta a camisa amarela da CBF, de triste papel no Brasil atual.  Na verdade, um pequeno grupo organizado por políticos da região ligados ao DEM. De longe, eles se olham. Os Guarani, como sempre, no silêncio circunspecto. Esperam, tranquilos, mas não mansos.

Lá no alto, os brancos ostentam o preconceito e a ignorância. Pouco sabem sobre o mundo indígena. Em nem querem conhecer. Tal como no longínquo 1500, chegam com suas bandeiras e verdades, vendo o outro, diferente, como inimigo. E não são.

Já os Guarani observam com aquele mesmo olhar afiado com o qual miraram as caravelas naqueles tempos distantes. Viram os homens chegarem e acolheram com risos e oferendas. Mas, ao longo desses mais de 500 anos, eles já sabem que a hospitalidade nunca valeu de nada diante da cobiça. Carregam bem fundo na alma e no corpo e memória da violência, do massacre, do assassínio, do terror.

Hoje, nesse domingo de sol, eles se olharam outra vez. Distantes. O diálogo mais uma vez impossível.

A terra da área do Morro dos Cavalos é uma terra que já foi demarcada, portanto, legalmente terra indígena. Ali vivem as famílias que conformam a comunidade Guarani. E, como é do seu costume, as famílias se movimentam dentro da área. Assim, hora estão aqui, ora ali. É a sua maneira de viver.
Incansáveis na perseguição aos indígenas, alguns políticos da região, liderados pelo vereador Pitanta (DEM), continuam provocando a discórdia na tentativa de jogar a comunidade de Enseada contra os Guarani. Já foi assim durante o processo de demarcação, foi assim durante a desintrusão, foi assim nas conversas sobre a obra na BR 101. Acostumados a mandar no pedaço, eles não reconhecem a forma de viver dos indígenas, não aceitam o fato de que a terra está demarcada e buscam atrapalhar a vida dos Guarani ao máximo, esperando talvez que eles desistam e vão embora.

É a história “patas arriba”. Chamam de invasores aos donos originários de toda aquela terra. Uma terra que os Guarani nem reivindicam, e poderiam. Afinal, tudo era deles. Mas, em vez disso, se contentam com o espaço conquistado, que nem é o ideal. Agora, tudo o querem é viver em paz, do jeito deles.

É uma vida de sobressaltos. Quando não têm de viver esses momentos patéticos, precisam se defender de jagunços, de jornalistas mal intencionados, de políticos oportunistas, da justiça, da polícia, de tudo. O tempo todo na defensiva, como se fossem bandidos. Não são.

A farsa da “manifestação” armada pelo vereador é só mais um ataque dos tantos, cotidianos e sistemáticos. Porque a intenção é colocar medo, fazer com que se movam, saiam da terra, abandonem tudo. Afinal, quem pode viver assim, o tempo todo ameaçado, acossado?

O dia acabou e os manifestantes foram para casa. Jantarão felizes, por certo, comentando a ação contra os índios, os quais odeiam sem conhecer. Na aldeia, os Guarani discutem e se preparam. Sabem que não acaba aí. A terra é ouro para o branco.

Estamos no século XXI e no Brasil os colonizadores conseguiram exterminar grande parte dos povos originários. As pessoas brancas acham bonito vê-los no museu ou nas apresentações do dia do índio. Mas, não suportam saber que eles estão por perto, que se movem, que lutam, que buscam garantir seus direitos. Índio bom é índio quieto e distante. Mas o fato é que eles estão aqui e aqui ficarão.

Tenho dúvidas sobre se essas pessoas que são capazes de sair à rua, portando cartazes que chamam os indígenas de invasores, estão abertas ao diálogo. Tenho dúvidas. Mas, é preciso seguir tentando. Os povos originários, que chegaram a um número de 150 mil nos anos de 1960, praticamente a beira da extinção, agora já passam de um milhão. Levantam-se e assumem sua identidade. Querem viver em paz nos seus territórios. Para isso é preciso que o povo brasileiro os conheça, sem armaduras, de peito aberto, pronto para um encontro verdadeiro.

No velho Brasil colônia, dominado pela cobiça, isso não foi possível. Mas, hoje, muitos há que se solidarizam, que respeitam, que apoiam e que lutam junto. Essa é ainda uma longa caminhada. Mas, não há saída. Como dizem os chiapanecas, das montanhas mexicanas: “nunca mais o mundo sem nós”. E assim é. É preciso reconhecer o território originário, demarcá-lo e garantir que os povos vivam em paz. Mas, não nos iludamos. O que está por trás de ações como essa de hoje, na Enseada, é a velha luta de classes. Os indígenas, como os trabalhadores empobrecidos, estão no mesmo lado. O inimigo é o mesmo. E contra ele, vamos – como dizia o velho Quixote – travar uma longa e feroz batalha.

Fotos e informações: Comunidade Guarani