Terras indígenas: não sobrará nada se não houver luta
21.07.2017 - O presidente Michel Temer aprovou no dia 19 de julho, o parecer feito pela Advocacia-Geral da União e com isso, determina que toda a administração pública federal observe, respeite e dê efetivo cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Popular PET nº 3388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Essa ação determina que o governo pode atuar, suspendendo, inclusive, a demarcação de terras indígenas, se for para garantir “salvaguardas institucionais”. O argumento do presidente é o suprassumo do cinismo: que isso “servirá para garantir a pacificação dos conflitos fundiários entre indígenas e produtores rurais, diminuindo a tensão social existente no campo, que coloca em risco a vida, a integridade física e a dignidade humana de todos os envolvidos”.
Com essa anuência formal ao parecer da AGU o presidente indica que o caminho está aberto para os latifundiários, a bancada do boi, o agronegócio, os grileiros de terra. Qualquer terra indígena, sob o argumento de que exista sobre ela “um interesse nacional” poderá ser tomada. Nelas podem ser abertas estradas e instalados equipamentos públicos. Ou seja, sem essa de respeitar o direito ou a vontade dos povos originários. Cabe lembrar que as terras indígenas conformam parcos 12% do território nacional, mas sob elas estão muitas riquezas, tanto minerais como vegetais.
Qualquer pessoa com um mínimo de compreensão sabe que o conceito de “interesse nacional” pode variar bastante conforme a direção que um governo dê a isso. Logo, a notícia mostra que Temer já sinaliza favoravelmente a grandes transformações no âmbito das terras indígenas. A assessoria do planalto, bem como a mídia comercial, que é servil ao Estado e ao capital, insistem em dizer que essa assinatura de Temer ao parecer da AGU, não muda nada na lei e nem no andamento das demarcações, sendo apenas a internalização de uma decisão do Supremo que já está tomada.
Isso é uma meia verdade. A decisão de intervir nas terras usando a desculpa de “interesse nacional” foi mesmo tomada pelo Supremo, mas as comunidades indígenas estão em luta contra ela. Eles sabem – com uma sabedoria de 500 anos – que qualquer coisa pode ser “interesse nacional”, inclusive o assassinato sistemático de indígenas para “limpar” as áreas, tornando-as presas do latifúndio. Lembram bem que isso já foi uma política nacional e que agora ainda segue, camuflada, mas segue. Basta ver a completa omissão do estado diante dos ataques dos latifundiários que, inclusive, fazem ações contra os índios em conjunto com as forças públicas.
Outro ponto de rechaço total é o chamado marco temporal. O Supremo quer reconhecer terras originárias apenas aos indígenas que estavam sobre a terra no ano da promulgação da Constituição, 1988. A ocupação anterior não vale. Pouco importa aos brancos togados se esses povos não estivessem sobre as terras porque tinham sido expulsos a ponta de bala. Isso não lhes toca o coração. A justiça, como qualquer outro poder instituído é representante do capital e como tal, não tem compaixão.
A terra é o elemento principal da acumulação capitalista. Foi a partir do roubo de terras, com a expulsão dos camponeses para a cidade que esse sistema começou. Jogando as famílias na cidade, sem qualquer possibilidade de manter a vida, o sistema capitalista de produção ofereceu a “liberdade” de essas pessoas venderem sua força de trabalho. Assim, lá foram elas para as fábricas, enquanto as ovelhas – que dariam a lã para os capitalistas - tomaram os campos que eram seus.
Esse processo de acumulação nunca parou. Cada vez que o capitalismo precisa se expandir, ele recorre ao roubo de terras. Porque uma família que tem um pedaço de terra, tem a condição de se manter. E é preciso tirar tudo dela, para que ela possa servir ao capital.
Esse é discurso do deputado catarinense Valdir Colatto, ferrenho defensor do agronegócio, para os povos originários. Segundo ele, “essa gente” precisa trabalhar e não ficar querendo uma terra que não é mais dela. O que ele quer é fazer o que sempre é feito: limpar as terras de gente para que elas possam ser tomadas pelo agronegócio. Aí, quem sabe, se os índios forem “bonzinhos” podem até ganhar um emprego na propriedade, desde que seja por comida e moradia, dentro do novo modelo trabalhista brasileiro. Ou seja, o que o agronegócio quer é tornar o indígena uma mãos de obra assalariada, para que dele possa ser extraída a mais-valia, coisa que hoje não acontece, porque os povos têm suas terras e têm outro modo de organizar a vida. Afinal, seriam mais de um milhão de pessoas entrando no sistema de exploração.
O estado brasileiro já fez vários experimentos com os indígenas. Tentou escravizar, não deu certo. Eles resistiram. Tentou exterminar, não deu certo. Eles sobreviveram. Tentou incorporar na sociedade branca, não deu certo. Eles são discriminados. E, ao longo de todos esses séculos as comunidades resistiram, encontrando formas de seguir vivendo, mesmo sem o território. O que move é a luta. Ainda que sem terra os povos se organizam e lutam. Muitos conquistaram o território à custa de muito sangue.
Agora, enfrentam mais um capítulo dessa acumulação selvagem. Sim, porque selvagem é o capital. Esse sistema que tudo que toca, destrói.
Por isso não há surpresa na decisão de Temer. Tornar capilar a decisão do Supremo, contaminar todas as instâncias, inocular o ódio aos indígenas como se eles fossem os responsáveis pelo atraso da nação. Tudo isso faz parte do golpe, dado para que essa nova reacomodação do capital possa se fazer. O ataque aos povos indígenas não está descolado do ataque aos trabalhadores - com a aprovação das leis trabalhistas e da previdência. É a “sétima cavalaria” chegando para “salvar” os latifundiários, os assassinos de índios, os ladrões de terra.
Esse é um tempo difícil para os indígenas, assim como para os trabalhadores. O que está em curso é o projeto de uma classe, a dos ricos, sobre outra, a dos empobrecidos. É tempo de entender que tudo está ligado e que essa é uma guerra de classes. Tanto aqueles que estão despojados dos meios de produção, os trabalhadores, como os indígenas, que também estão nessa condição, estão sob ataque, sistemático, desde a invasão. Por isso a luta tem de ser uma só. Os trabalhadores precisam entender o mundo indígena e defendê-lo, compreender que é outro modo de vida, e os indígenas precisam compreender que os trabalhadores são seus potenciais aliados nessa batalha. Esse encontro precisa se fazer para que a luta seja unificada. Todos estão em luta contra o capital.
Por isso a batalha contra esse projeto não se esgota na queda ou saída do atual governo. Essa é uma luta que só poderá ter vitória quando os trabalhadores, os indígenas, os negros, as mulheres e todos os excluídos caminharem juntos na construção de outra sociedade, que terá ser construída na compreensão das diferenças. Enquanto isso, resistimos!
Afinal, mesmo a sétima cavalaria, que era considerada imbatível sob o comando do general Custer, um dia caiu sob o heroísmo do povo indígena que uniu as forças para combater o assassino de índios. Cheyennes e Sioux, juntos, com Touro Sentado e Cavalo Louco à frente derrotaram Custer na batalha de Litlle Bighor. É assim: unidos, somos mais e podemos vencer.
Angola e as línguas originárias
29.05 - 2017 - Entrevista com o angolano Ezequiel Bernardo, mestrando em Sociolinguística na UFSC, sobre a situação de Angola na relação com as 22 línguas que seguem sendo faladas no país, além do português. Segundo ele, muitos são os problemas que vivem as comunidades, por não serem entendidas nos espaços institucionais e com o apagamento de suas culturas. Entrevista de Elaine Tavares.
O deboche do latifúndio tem que parar
01.05.2017 - O ataque de jagunços e fazendeiros a uma comunidade indígena do Maranhão, com requintes de crueldade, não é uma coisa isolada nesse país. A violência dos grandes fazendeiros contra as populações originárias cresce a cada dia, em número e grau, na medida em que esse grupo – incensado como “agronegócio” – vai ficando mais poderoso. Liderando uma bancada considerável no Congresso Nacional, os representantes do latifúndio têm como objetivo principal acabar com as demarcações de terras, tornando os indígenas “trabalhadores assalariados”, como – sem qualquer prurido – observou o deputado catarinense Valdir Colatto.
Os fazendeiros, que seguem expandido as fronteiras agrícolas, no melhor estilo da acumulação primitiva – ou seja, à custa da expulsão dos pequenos agricultores e também dos indígenas – não querem saber de terras protegidas, florestas resguardadas, águas abrigadas da poluição, e muito menos de gente disposta a cuidar de tudo isso. Seu negócio é esgotar o solo com a monocultura ou com a exploração de minérios. Para essa gente, os povos originários são um atrapalho que precisa ser eliminado, de vez.
Não é sem razão que as comunidades indígenas vêm enfrentando toda essa violência. Desde que o movimento dos originários decidiu assomar em rebeldia, realizando as retomadas, a guerra está declarada. E o que são as retomadas? É a ocupação das terras originárias pelas comunidades que são as verdadeiras donas do lugar. Espaços como o Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde os povos indígenas estão acampados em estradas, passaram a ser focos de intensa luta. As etnias originárias decidiram dar um basta aos ladrões de terra e foram tomar o que é seu. Nesse processo, enfrentam toda a fúria da jagunçagem, essa forma de banditismo tão comum no Brasil rural. Na verdade, povo pobre explorado duplamente pelos fazendeiros, que além de expulsá-los das terras, tornando-os sem terra, os transformam em criminosos.
Outros estados como o Pará, a Bahia, o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, enfim, cada lugar onde tem povo indígena, vive seu drama. E, como não poderia deixar de ser, os fazendeiros tem o apoio da mídia comercial que os mostra como os “produtivos”, os que geram a riqueza do Brasil: “o agro é tech, o agro é pop”. Mentiras e mais mentiras. O agronegócio não é pop, ele é assassino. O agro não é produtivo, ele aposta na monocultura, no geral para fornecer matéria prima de forragem animal. Quem produz a comida que nos chega à mesa é o pequeno produtor.
O agronegócio quer as terras indígenas. Essa é a realidade. Os fazendeiros querem se apossar de todos os territórios que já estão demarcados e os que estão para serem entregues aos povos originários. Eles não querem que os indígenas protejam seus espaços sagrados, suas terras ancestrais. Não querem que os indígenas mostrem que é possível viver sua cultura e também avançar rumo a uma sociedade justa, equitativa, solidária e distributiva.
Os fazendeiros querem as terras indígenas e estão dispostos a eliminar cada um e cada uma, se preciso for. Por isso instauram o terror nos espaços conflagrados. E o que é pior, fazem isso sem que o poder público tome qualquer atitude. Eles correm soltos pelos pastos, arma na mão, boca babando. Muitas vezes atacam os indígenas acompanhados pelos soldados da força pública, protegidos pelo estado.
E os indígenas que nada mais tem de seu a não ser o corpo em luta, não se entregam. Enfrentam no peito aberto os jagunços, os bandidos, a polícia. Não abrem mão de seus territórios. Porque para um povo indígena a terra não é coisa que existe para vender ou para especular. Não. Terra é lugar dos deuses, da vida, da construção coletiva da vida. O território é o cenário vivo da sua cultura, o coração pulsante de sua realidade. Sem ele não há razão para viver.
Faz tempo demais que os ladrões de terra querem acabar com os indígenas. Começaram a agir em 1500 quando aportaram na Bahia. Tentaram de toda forma exterminar as culturas, o modo de vida, as pessoas mesmo. Não deu certo. Nos anos 60 do século passado, os ladrões de terra conseguiram fazer com que existissem apenas 180 mil almas indígenas nesse chão de tantos milhões de hectares. Quase colocaram fim em tudo.
Mas, com a força de Tupã, Ñanderu, Kuaray, as gentes originárias renasceram das cinzas. Saíram da tutela, do torpor, do medo. Já não havia mais nada a perder. Então foram se organizando e se levantando. Muitas etnias já conquistaram seus territórios, mas estão em vias de perder, com a proposta da PEC 215, a menina dos olhos dos fazendeiros. Eles querem poder para desfazer as demarcações. Mas, enquanto eles tramam nas salas acarpetadas, os povos indígenas se organizam e lutam. Fazem retomadas, resistem.
Na semana do 17 a 21, os povos indígenas estiveram em Brasília, no acampamento anual. Momento em que procuram estabelecer diálogo com os congressistas e com a população. E ocuparam a frente do Congresso com suas cores, duas danças, suas vozes, suas demandas. Mas, em vez do respeito e do encontro fraterno o que receberam? Balas, gás, paulada, desfeita. Na mídia, de novo a distorção. Um indígena com um arco diante do prédio aparecendo mais perigoso do que toda a tropa de choque da polícia militar. O mundo inteiro gritou diante disso. E no Brasil, quase ninguém. A população já domesticada pela ideia de que os índios são bárbaros e não merecem viver. Tão 1500.
Agora, com esse horror no Maranhão, quando pessoas tiveram suas mãos decepadas, observa-se certo choque. Como se a barbárie tivesse acontecido apenas ontem, com esse ato cruel. Mas, o que aconteceu no Maranhão acontece todos os dias nos cantos do Brasil, no interior da floresta, no incessante ataque do latifúndio sobre as terras indígenas e sobre os povos que lutam. Há cinco séculos os fazendeiros, protegidos pelo estado, vêm decepando membros e vidas.
Nesse contexto de terror cada dia mais exacerbado contra os povos indígenas só há um caminho. Entender definitivamente que os indígenas têm direitos e frear o latifúndio. Esse deboche cotidiano dos grandes ladrões de terra precisa acabar. E isso só acaba quando a sociedade se levanta em uníssono, em cada cidade, cada canto, cada rua, cada casa. É preciso que o clamor chegue aos que governam e que isso impulsione mudanças.
Sem uma luta massiva de toda a população, cada um de nós será também responsável pelas mãos decepadas, pelo suicídio de jovens, pela violação de mulheres, pela morte de crianças, pela fome de povos inteiros.
É tempo de retribuir os povos originários pela sua generosidade. Eles acolheram os homens brancos com os braços abertos, com risos e carinhos. Receberam a violência e foram roubados. O encontro ainda não se deu. Só o saque. É hora de o encontro verdadeiramente acontecer. Que se garantam as terras, que se garantam os direitos, que se deixem os indígenas viverem em paz. Só assim poderemos começar de novo.
É tempo de retribuir os povos originários pela sua generosidade. Eles acolheram os homens brancos com os braços abertos, com risos e carinhos. Receberam a violência e foram roubados. O encontro ainda não se deu. Só o saque. É hora de o encontro verdadeiramente acontecer. Que se garantam as terras, que se garantam os direitos, que se deixem os indígenas viverem em paz. Só assim poderemos começar de novo.
Se não for assim, cada indígena que cai, tomba por nossa mão.
Indígenas: um dia de luta
21.09.2017 - Lideranças e estudantes indígenas de várias etnias se reúnem na UFSC para afirmar a luta na defesa de seu modo de vida. O objetivo da atividade organizada por estudantes indígenas da UFSC é dar a conhecer a realidade e lutas dos povos originários e respeito por sua cultura.
Sobre o Dia do Índio
Atividade foi promovida pela vereador Renato da Farmácia, do PSOL, e contou com a participação de Cris Tupã e Marcos Karaí, da etnia Guarani.
Aceitei falar hoje aqui na seguinte condição. Primeiro, como uma descendente do povo Charrua, da Banda Oriental, que vicejou junto às duas margens do Rio Uruguai, tanto no lado uruguaio quanto brasileiro. E segundo como alguém que tendo sangue charrua e não renegando a minha condição, tem pautado sua vida na missão de falar aos não-índios sobre a importância de se conhecer as culturas originárias, para que não se reproduzam os discursos discriminatórios e racistas, tão comuns àqueles e àquelas que desconhecem a realidade desses povos. Importante ressaltar que a chegada dos espanhóis e portugueses nas costas de Pindorama não foi um encontro de culturas. Foi uma invasão, violenta e genocida. Mas, hoje, passados mais de 500 anos, os povos originários seguem acreditando, como naquele então, que é possível viver em paz. Apenas não abrem mão de seu direito de ter território e vida digna.
1 – A primeira coisa a dizer é que essa gente – que muito chamam erroneamente de índios - é a verdadeira dona dessas terras. Digo erroneamente porque essas etnias tem nome próprio: Guarani, Laklãnõ Xokleng, Kaingang, Xetá, Charrua e assim por diante. Eram e são povos com história e cultura. Eles aqui estavam quando chegaram os invasores, eram mais de cinco milhões, e seus espaços foram sendo roubados na ponta da espada e na bala do canhão. Cada pedaço de terra onde hoje estão nossas cidades, as propriedades rurais, as fábricas, tudo, era originalmente desses povos.
2 – Não há qualquer argumento plausível para justificar o massacre desses povos. O que moveu os nossos antepassados brancos foi a sede incontrolável de ouro e riquezas. Em nome disso eles invadiram, mataram, estupraram, violentaram e destruíram tudo o que viam pela frente, incluindo aí grandes civilizações. Em nome de um deus único, o deus cristão, e argumentando que os originários não tinham alma, eles roubaram a vida e a terra de todos eles.
3 - Todo esse processo de invasão e violência não se deu sem luta. Os povos originários resistiram e batalharam contra os invasores desde os primeiros anos da chegada deles às nossas praias. Caciques como Hatuey, Guaicaipuro, Tupac Catari, Tupac Amaru, Sepé Tiaraju e tantos outros empreenderam lutas gigantescas na defesa de seu mundo. Infelizmente foram vencidos e tiveram suas terras roubadas.
4 - Mas, se foram vencidos, não foram extintos. Eles sobreviveram e estão aí. Com a instituição do estado nação, Brasil, houve a tentativa de incorporar esses povos sobreviventes a uma única identidade: a brasileira. Mas, isso não foi possível. Não por eles, que sempre foram muito tranquilos na possibilidade do encontro. A dificuldade sempre foi do lado do branco, que sabendo de seu crime, sempre teve medo. Então, a saída foi desqualificar e aviltar. Assim, o indígena, mesmo que vivendo na cidade, sempre foi apontado como alguém ruim, perigoso, preguiçoso, inútil. Essa é a ideologia que venceu. E mesmo aqueles que nunca viram um índio na sua vida, que nunca conheceram as culturas originárias, são capazes de reproduzir essa mentira.
5 – O resultado é perverso. O homem branco destruiu o modo de vida do originário e ao mesmo tempo se nega a conviver com ele. Não quer que ele tenha terra, e lhe nega a possibilidade de ser alguém digno de respeito na sociedade branca. É um beco sem saída.
6 – O fato é que contra todas as previsões, os povos originários não se acabaram e nem se aculturaram. Eles sobreviveram à extinção e se fortaleceram como povo. De cinco milhões na época da invasão a 180 mil no final dos anos 60 do século passado, eles passaram para 300 mil nos anos 80 e agora já são quase um milhão. Contra todas as previsões de desejos eles sobreviveram e cresceram. Por isso, hoje, eles querem de volta seus territórios. Porque ninguém pode ser uma cultura sem território. É o território que determina o modo de viver. Assim que nas culturas originárias eles precisam de espaço para caçar, pescar, nadar, fazer suas batalhas, plantar, enterrar seus mortos, dançar, educar os filhos, fazer coisas que a comunidade branca não consegue compreender porque não é o seu modo de vida. Os brancos podem viver apertados numa quitinete ou morar numa cidade sem mobilidade. Uma comunidade originária, não. Então, porque se nega a eles seu território? Se sabemos que foi roubado? Se conhecemos a história? Por quê?
7 - Os povos originários não querem tirar a terra dos brancos, não querem sua fazenda, sua casa, seu quintal. Não. Eles sabem que já não é mais possível viver aqui nesse espaço, sem a presença dos brancos. Afinal, são 500 anos de convivência forçada. Mas, eles querem um espaço para viver conforme seus costumes e tradições. Um espaço grande, que lhes permita viver de verdade. Seus espaços tradicionais, com água pura, florestas, terra fértil. Esse espaço existe e pode ser ocupado pelos povos autóctones.
8 - Mas, há uma grande barreira nisso tudo: vivemos no sistema capitalista de produção. E, para o sistema capitalista essa proposta de vida dos originários é inconcebível. No sistema capitalista as pessoas existem para serem trabalhadoras, para vender sua força de trabalho a algum patrão. Isso fará com seja gerado valor, e isso será o lucro do patrão. Ninguém ficaria rico se as pessoas trabalhassem para si ou vivessem coletivamente em comunidade. A riqueza só é possível com a exploração do trabalhador.
9 - Por isso, para os que controlam o sistema, o índio é um inútil e tem de ser destruído. Só que o índio não é um inútil. Ele só não quer ser um trabalhador aos moldes do capital. Ele não quer vender sua força de trabalho. Não quer gerar riqueza para uma pessoa que ele nem conhece. Não. O indígena quer viver na sua terra, na sua comunidade, trabalhando para o bem viver de todos os seus, em equilíbrio com a natureza. E por favor, isso não significa que ele queira andar pelado, de arco e flecha, como nos tempos primitivos. As comunidades estão convivendo há 500 anos com o mundo branco, e durante todo esse tempo eles foram obrigados a gerar valor, a vender sua força de trabalho para poder comer. Portanto eles têm direito a todas as maravilhas criadas pela tal “civilização”. Essas maravilhas são deles também. Então não venham com esse mimimi de que índio usa celular, computador e tudo mais. Sim, ele usa. Não parou no tempo. As culturas avançam e o índio não está cristalizado na floresta.
10 - O real motivo da guerra contra os índios hoje é o mesmo que moveu portugueses e espanhóis no final do 1400: riqueza. Se o índio não quer gerar riqueza para o capital, que desapareça. Os grandes senhores brancos que dominam espaços como esse, de poder, não querem que essa gente seja uma cunha de “mau exemplo”, exercitando coisas como trabalho coletivo, terras comunais, equidade, solidariedade, cooperação, amor pela natureza, equilíbrio. Isso é coisa de comunista, dizem. Logo, eliminem.
11 - As poucas terras que ainda estão na mãos dos originários somam perto de 12% do território nacional, ou seja, nada. Mas, para desgraça dos povos elas são também cheias de riqueza: madeira, ouro, diamante, nióbio, água. E o agronegócio, a empresa rural insaciável, quer tudo isso para si. Não apenas a riqueza material que está no solo e no subsolo, mas também a força de trabalho que virá do índio expropriado, que expulso da terra e do seu modo de vida, será obrigado a vender sua mão de obra por troca de nada, como os trabalhadores brancos. Vocês sabiam que os Terena, do Mato Grosso do Sul, vêm como boias-frias para Santa Catarina, na colheita da maça? E que eles ganham pouco mais que nada? Pois é, é índio que o capital quer.
12 - Então, é por isso que pessoas como Caiado, Kátia Abreu e outros de seu tipo, se tiverem de arrasar cada aldeia, cada comunidade, eles o farão. Não há compaixão no capital.
13 - A má noticia, para eles, os poderosos, é que os originários seguem vivos, crescem, se organizam, mantém acesa sua cultura e sua cosmovisão. Mesmo os mais aparentemente integrados tem dentro de si seu núcleo ético-mítico a lhe chamar. E, convocados, estarão nas fileiras da luta por território e pelo direito de ser quem são.
14 - Conhecer esses rápidos pontos já é um bom caminho para os não-índios. No Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos, na África, todo dia tem sido dia de índio. Porque essa gente existe, está de pé e em luta, cotidianamente, ainda que a gente não veja quase nada sobre essas lutas nos meios de comunicação. Assim, compreender esses povos e seus mundos é o primeiro passo para o pagamento de uma dívida que ainda precisa ser cobrada. Mas, o que tem de ficar claro é que os povos originários não querem cobrar o terror da invasão com sangue. O que esses povos querem é o seu território e o direito de viverem em paz.
O tal diálogo de culturas que muitos dizem ter existido em 1492, e que não existiu, ele ainda é possível. Mas, para isso é preciso uma mudança de postura por parte dos não-índios. Uma mudança que precisa começar. Já é tempo. Uma mudança que se expresse no respeito ao modo de vida originários, e no seu direito ao território. É tempo do pachakuti, como anunciam os indígenas dos Andes. Quando tudo muda. No 1492 os brancos mudaram a vida de quem vivia aqui. Agora é hora de a mudança acontecer no mundo branco.
Já basta, dizem os zapatistas. Nunca mais o mundo sem nós. E assim é.
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